"Se chorei ou se sorri, o importante é que em Poções eu vivi"

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Carnaval - das caretas à meningite

Crônica publicada em 2007 nos sites Terradodivino e Recanto das Letras

Tenho algumas lembranças bem antigas do Carnaval de Poções, de 1962.

Uma delas, a figura das “caretas”. De repente, no domingo de carnaval, a Rua da Itália era invadida pelos máscaras pretas com orelhas coloridas pontiagudas e lábios de um vermelho forte. Tinha um medo terrível e não via a hora daqueles “cãos”, como eram chamados, irem embora. As fantasias muito bem feitas e difícil saber, de imediato, quem estava por baixo delas. Era Vicentão Sarno e a sua turma (César Lubião, Marcos Lagartixa, Carlinhos Carioca, Luiz Bosteiro, Rudiá e outros), a gente acabava descobrindo.

Em meio às caretas, me lembro de outro grupo que desfilava pelas ruas fazendo batuques e tirando som de cuícas, tambores e tamborins – a Batucada. A praça Deocleciano Teixeira lotava. Era uma turma mais velha, geração acima da minha, que se vestia com roupas listradas de vermelho e branco com apliques e arremates em vermelho. Tinham uma coreografia em forma de ziguezague e  estilo musical pouco comum na cidade, saindo das mãos de tantos e de alguns sem muita afinidade musical. Valia pelo barulho, era Carnaval.

Já no final da década de 60, abria-se espaço na rua para fantasias individuais com a liberação de criatividade e espontaneidade. A melhor de todas que eu assisti foi a criada por Pepone, que se fantasiou de Seu Corinto Sarno com roupas próprias do nosso tio – calça com suspensório, chapéu, óculos e um possante pulverizador costal (era utilizado para pulverizar as parreiras com enxôfre). Só que Pepone inovou e colocou farinha de trigo no lugar do enxôfre. O pó branco era enxergado de longe e cada vez mais as pessoas se ofereciam para receber a sua pulverizada.

(Pepone: quando ler a crônica, comente sobre as reações de Ernesto Benedictis e Fidelão)

Mas o Carnaval de rua acabava e continuava no clube. Havia uma grande expectativa quanto à decoração de cada ano. Por muito tempo, um dos grandes idealizadores dessa decoração foi Miro Paradela. Ele criava a sua equipe para colocar serpentina ao redor das paredes em direção ao centro do clube, fazendo imensas barrigas sem deixar espaços abertos. Nas paredes a gente pendurava velhos cartazes de figuras estilizadas, utilizadas nos anos anteriores. O grupo era reforçado por Beto Nápoli. Participei de várias decorações nos dois clubes. Tudo isso em troca de algumas garrafas de whisky e cervejas durante o carnaval – era o preço cobrado e pago pela diretoria do clube. Cabia a Nadinho e a Coêlho o controle do consumo do grupo ornamentador.

O Carnaval de Poções variava de iniciativas e cada ano era diferente. Igual mesmo era a banda e o sentido de rotação anti-horário das pessoas dentro do salão. Quando a gente ia dormir, o ressonar do surdo de marcação parecia não querer desligar da nossa cabeça.

No início da década de 70, me mudei para Salvador e revezei alguns carnavais entre as duas cidades. Aqui, a minha participação ativa começou na praça da Piedade. Lá passava o Bloco do Barão, sem cordas, com o velho Barão sentado numa cadeira sobre o carro alegórico, usando óculos escuros e acenando para a multidão de admirados e fanáticos seguidores. Em 77, desfilava o Bloco do Jacu, sem cordas e, entre tantos foliões, os meu amigos Zé Boca de Timbáu e Arivaldo, que eram chamados de Nestor e Zé Carioca, pela semelhança com a dupla de Walt Disney. Os Apaches do Tororó vinham na cola do Jacu.

Para se ter idéia, não havia ainda a passarela do Campo Grande. Tudo se resumia à Avenida Sete, Praça Castro Alves, Rua Carlos Gomes, com retorno na Casa d´Itália. Um bloco dava três voltas por tarde naquele percurso. O palco principal ficava montado na praça do Elevador Lacerda.

No sábado pela manhã a gente se reunia ao lado da Igreja do Rosário, numa barraca montada no terreno defronte a agência Bradesco Avenida, onde trabalhavam Edson Exler, Rominho Schettini e Sandoval Calmon. Portanto, era fácil encontrar o resto da turma: Minuca (filho de Seu Martinho Magalhães e Dona Albinha), Clodoaldo (cunhado de Minuca), Hernane Exler (irmão de Edson), Michele (meu irmão), Gil e amigos dos amigos.

Nosso bloco era o “Sniff”, o bloco do gato, que saia a partir de domingo. Um dos mais bonitos e freqüentado por “universitários de engenharia”, segundo Lindivalson e Maurício, dois donos do bloco, que tinha ponto de partida na porta do Colégio Severino Vieira em direção a Avenida Sete, parando em todos os bares da Joana Angélica.

Nosso carnaval era organizado e havia pontos estratégicos. A gente marcava encontro no Clube de Engenharia, na Lanchonete Manon do Forte de São Pedro, no Braseiro, na Gooday Chinesa para comer esfiha ou na Tôrre do Canela onde morava. Fazíamos dali um ponto especial, pois a geladeira era abastecida diariamente com cerveja em lata. Até o fundo da geladeira era disputado para secar as mortalhas, os abadás da nossa época.

Clodoaldo, o grande animado da turma, tinha o apelido de “tranca-rua” e um contagiante bom-humor mesmo ressaqueado. Pulando dentro do bloco, gritava “Olha a meningite, olha a meningite” para lembrar a todos que havia um surto da doença na cidade e que o beijo era um fácil transmissor. Então, ninguém podia beijar na frente dele que logo ia ouvir a recomendação. Imagine, na média, eram mais de vinte casais se beijando na corda do bloco. Coitado, passava o dia inteiro gritando.

Edson sempre foi considerado o “desanimado do carnaval”. Ficava igual à aquelas cobras ninjas, apesar do apelido ser Jacaré. As vítimas vidravam no seu belo par de olhos azuis. Lógico, o bote era certeiro. Não desperdiçava veneno. Mantinha sempre a mesma estratégia: ficava andando dentro do bloco no domingo e segunda. Na terça, danava a pular. Não tinha vítima de ninja que resistisse.

Mas o quartel general era a casa de tia Ilza, mãe de Edson, na Barra Avenida, bem pertinho do Largo do Porto da Barra. Além de ser nossa conselheira, tinha uma paciência danada para agüentar tanto bêbado e manter sempre quente o panelão de feijoada. Era o ponto de transição da Avenida Sete para os carnavais de clube, entre eles a Associação Atlética da Bahia. Não havia ainda o carnaval na Barra. Quando a gente chegava, tia Ilza logo dava conta das nossas brincadeiras na rua. É que a TV mostrava ao vivo o palco da Praça Municipal e ela já havia visto cada um de nós e com quem tínhamos passado abraçados.

À noite, de mortalhas mudadas, falsificávamos as carteirinhas e todo mundo entrava de graça para brincar nos salões. Eliana e Elizabete, irmãs de Edson,  faziam o revezamento de entrada e saída no clube para levar as carteiras e só paravam depois de todo o grupo ter entrado.

Edson, com aquele sorriso de dentes travados me dizia: “já é domingo de carnaval e estamos cansados. Enquanto isso, o carnaval em Poções tá começando!”.

É certo que a nossa turma presenciou a mudança do Carnaval. O que era popular, de se assistir sentado na calçada da própria casa, transformou-se rapidamente em comércio. É comum nos atuais carnavais, os mais velhos relembrarem de cima dos camarotes um pouco das suas histórias quando ainda passa uma bandinha “chupa-catarro”. No asfalto, a juventude vai construindo aquilo que um dia vai chamar de passado.

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