Jornal O Popular - Goiânia (20/05/2018)





Por Malu Longo - Jornalista - malu.longo@opopular.com.br


Pirenópolis mantém tradição de 192 anos das cavalhadas

Encenação da batalha entre mouros e cristãos é ponto alto da festa do Divino Espírito Santo. Moradores da cidade histórica passam o legado de pais para filhos


Aos 78 anos, o produtor rural Felipe Pereira é um orgulhoso auxiliar do filho Gleisson Humberto, de 49 anos, um dos 24 cavaleiros que ajudam a manter viva a representação da batalha medieval entre mouros e cristãos em Pirenópolis, a 130 quilômetros de Goiânia. A encenação das Cavalhadas, que começou neste domingo (20) e termina nesta segunda-feira (21), sobrevive há 192 anos pela devoção de várias famílias que transmitem às gerações mais novas o culto ao Divino Espírito Santo. Em Goiás, as Cavalhadas é uma tradição presente em onze localidades.
Mascarado de Pirenópolis (Foto André Costa/O Popular)
Durante 15 anos, a partir de 1966, o pernambucano Felipe Pereira foi um dedicado cavaleiro cristão em Pirenópolis. É também do lado do sol poente, no campo de batalha, que há seis anos está Gleisson. “Somos todos muito envolvidos com as tradições locais”. O filho mais velho de Gleisson, Joaquim Henrique Neto, de 22 anos, também participa da batalha como lanceiro. A caçula, este ano, é uma das pastorinhas da festa. “Corremos pela devoção ao Divino Espírito Santo”, diz o cavaleiro.
Gleisson explica que os ensaios para as Cavalhadas são realizados a partir de 11 dias antes da encenação. Os cavaleiros acordam às 3h30 e seguem para a “farofada” antes de ir para o campo de batalha. O nome remete aos primórdios da representação, quando os cavaleiros faziam uma fogueira ao lado do campo e ali faziam uma farofa antes do amanhecer. Hoje, eles são recebidos na casa de um cidadão que se prontifica a oferecer um rico café da manhã aos 24 cavaleiros.
Essa capacidade de transmitir a tradição encantou o historiador Luiz Sangiovanni, de Poções (BA). Pela primeira vez conferindo a Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, ele ficou impressionado com a riqueza das vestimentas e a religiosidade popular. Para ele, ao contrário de sua cidade onde também há o culto ao Divino Espírito Santo, o profano em Pirenópolis tem papel coadjuvante. O historiador, que no dia anterior assistiu a uma missa onde pode conferir músicas em latim, acredita que há, ao longo dos anos, o fortalecimento da cultura religiosa. “Essa continuidade cultural é muito importante”.
O nordestino Felipe Pereira tornou-se um devoto desde que chegou em Pirenópolis no final dos anos 1950. Ele lembra que no tempo em que usava a vestimenta de um cavaleiro cristão era muito difícil encontrar pessoas dispostas a fazer o mesmo. “Hoje, não. É preciso entrar na fila para se tornar um cavaleiro”. Para ele, as vestimentas enriqueceram muito desde que deixou o campo de batalha. “Na minha época somente os mouros tinham capa”. O filho Gleisson conta que hoje não consegue se vestir sozinho para a encenação. Nos três dias de batalha ele precisa do auxílio da mãe, de uma tia e da bordadeira, responsável pelos adereços, para ficar impecável antes de enfrentar os mouros.
Aos 16 anos, a estudante Maria Clara Godinho Oliveira é também uma das pirenopolinas que dá continuidade à tradição. Ela já foi pastorinha em anos anteriores, mas este ano se enfeitou para entrar de porta-bandeira no campo das Cavalhadas. “Eu estou aqui para atender um desejo da minha mãe”, conta. Segundo ela, a mãe, na sua idade, sonhou em ser uma porta-bandeira, mas não teve oportunidade. “Eu resisti um pouco à ideia, mas depois aceitei por causa dela. Mas estou muito feliz em estar aqui. É uma energia muito grande”.
Choro no cortejo
O cortejo do imperador é um dos momentos de grande expectativa da Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis. Ontem, mais uma vez milhares de pessoas - gente da terra e turistas - acompanharam o desfile. Imperador de 2018, João Paulo Ferreira Vieira não escondeu a emoção quando deixava a matriz local, no final da missa de Pentecostes, acompanhado da mulher Ana Amélia. Suas lágrimas contagiaram alguns pirenopolinos nas proximidades, num sinal claro de que a devoção vai se manter ainda por muitas gerações.
Mascarados são atrações à parte na festividade
Os mascarados ou curucucus são uma atração à parte na Festa do Divino Pai Eterno, em Pirenópolis. Tradicionalmente, a eles é atribuído o direito de fazer brincadeiras e troças com os participantes, assim como também é permitido que eles solicitem dinheiro. Alegres e coloridos sobre cavalos também adornados, fazem muito barulho e atraem a atenção por onde passam.
Com o passar dos anos os mascarados adotaram muitas representações. Entre as mais tradicionais estão a cabeça de boi, com flores de papel crepon, que foi incorporada como um símbolo das tradições pirenopolinas, e a caveira.
Este ano, a máscara de Dali, popularizada na série espanhola La Casa de Papel, e a do Coringa, o vilão de Gothan City, também marcaram presença nas festividades da cidade.

Um pouco antes da batalha entre mouros e cristãos, os mascarados ocupam o campo com seus animais num ritmo frenético. É uma profusão de cores, mas também de significados. Assassinada no Rio de Janeiro em março, a vereadora Marielle Franco (PSol) foi lembrada por um deles. Neste domingo, um grupo de mascarados, carregando um caixão, avisava em uma faixa: “Estamos enterrando todos os corruptos do Brasil”.

Notadamente, nos últimos anos, está sob as máscaras a manifestação mais pagã da festa dedicada ao Divino Espírito Santo. Alguns jovens e adultos se utilizam do adereço para consumir bebida alcoólica de forma exagerada, distorcendo a tradição. “É um desrespeito”, comentou Pedro Lúcio, velho morador de Pirenópolis.

Encenação em 11 cidades 
As Cavalhadas, que representa uma batalha do século 6 entre as tropas do guerreiro cristão Carlos Magno contra os sarracenos, de religião islâmica (mouros), na Península Ibérica, foram trazidas ao Brasil pelos colonizadores portugueses. A encenação ocorre em diversas cidades do país. Em Goiás a tradição está presente em 11 localidades atraindo turistas e gerando divisas.

No mês de maio, encerrando a festa em louvor ao Divino Espírito Santo, ela é realizada em Pirenópolis (20, 21 e 22), Jaraguá (20 e 21) e em Posse e Santa Cruz (19 e 20). Em junho, a teatralização pode ser conferida em Palmeiras de Goiás (1,2 e 3), em Crixás e São Francisco de Goiás (9 e 10), Cedrolina, distrito de Santa Terezinha de Goiás (14 e 15) e em Hidrolina (16 e 17). Setembro é o mês de Cavalhadas em Corumbá de Goiás (7,8 e 9) e em Pilar de Goiás (8 e 9).
No primeiro dia de encenação ocorre o confronto entre mouros e cristãos. No segundo dia há a rendição e o batismo dos mouros que se convertem ao cristianismo. O terceiro dia é dedicado ao congraçamento e confraternização entre os cavaleiros.