"Se chorei ou se sorri, o importante é que em Poções eu vivi"

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Poções, não tão bem na terra como no céu... (Ficção)

Poções, mesmo nos dias de hoje, consegue me fascinar pelas lembranças dos momentos vividos em cada esquina, em cada rua e pela companhia dos velhos e inesquecíveis amigos. A saudade luta contra o progresso. O passado e o presente vivem num eterno embate.

Sempre será uma discussão de mesa de bar a evolução da Festa do Divino, as mudanças de hábitos e comportamentos do passado. Chico Picolé, rapidamente por telefone, me falou semana passada: - Não adianta pensar em fazer voltar o passado. Não temos mais como fazer, apenas lembrar e registrar.

Certamente, o que diz Chico é um grito perdido que ninguém mais ouve. É uma frase angustiante soando como uma guilhotina que cortou o seu passado. É tão angustiante quanto a cauda cortada da lagartixa, que vira para os dois lados, agoniza e não encontra mais o corpo para se reconstituir. Não me entrego!
Outro dia, no cemitério de Poções, enquanto visitava o túmulo de meu pai, dei uma volta e, ali, parecia que a cidade estava viva. Cada lápide que reconhecia tinha significado, tinha história, era a volta ao passado sem o medo de antes.

Lembrava-me do catecismo de Dona Fetinha, que dizia existir o lugar dos bons e o lugar dos maus - o céu e o inferno. O cemitério era o céu e, ao mesmo tempo, o inferno.

Em alguns túmulos, os meus ouvidos ainda escutavam o barulho dos punhados de terra jogados sobre os caixões de uma altura de pouco mais de sete palmos e, calmamente, também ecoavam as palavras de Alcides Batatinha na sua última homenagem ao morto. O cidadão estava partindo com a sua alma para o purgatório e ali selada a sua sentença - para o céu ou para o inferno?

À tardinha, na hora dos enterros, Poções tinha sempre umas nuvens vermelhas no horizonte. Era o céu ou inferno? Eu acho que era o céu. Nossa cidade era cheia de gente boa e ninguém investiria na construção do inferno. No máximo, podia ser o purgatório e a passagem direta para o céu, porque os ruins a gente perdoava aqui mesmo.

Paciência, o passado começa na porta do cemitério e termina lá dentro. Talvez, valesse a pena fazer um pavilhão na porta dele e a gente ficaria mais feliz na Festa do Divino. Teríamos a presença de todo mundo - os vivos e os mortos. Não teríamos o que reclamar - morrer, portanto, não seria tão ruim.

Ainda assim, se eu achasse a porta do céu, entraria lá para matar as saudades de uma Poções onde as coisas estão resolvidas, todos vivendo harmoniosamente onde o passado será sempre presente.

Mas, se a gente chega pela praça da Liberdade, a porta imaginária é ali, onde ainda enxergo os restos do obelisco. Em meio aos eucaliptos, no campinho, o baba de Bira Fernandes está rolando, enquanto na porta da prefeitura acontece a reunião dos velhos prefeitos: Olimpio Rolim, Otávio Curvêlo, Lulu Ramos, Anibal Carvalho, Dr. Aloísio Rocha e Tonhe Gordo, explicando como funciona a UPB. No outro lado da praça, uma conversa animada entre Argemiro Pinheiro, Chico Paradela e Pepeu. E lá vem Raimundo Paradela com um canário na gaiola para fazer “chama” no alçapão, bem no cruzeiro da Lapinha.

A camionete amarela de Luiz Sarno acabou de chegar da Fazenda Caetitú com um “panacum” de marmelos e vários latões de leite carregados por Erotildes. Veio, também, um feixe de copos de leite para ornamentar a igreja na missa de domingo. Marivaldo Soares na varanda, sem camisa, recebe seu Luiz, imitando a voz com um carregado sotaque italiano. Na casa ao lado, está Carlito Torres, ainda vestido de pijama de calças curtas.

Mais abaixo, seu Corinto Sarno voltando da caminhada de inspeção matinal das obras da igreja e do Hospital. Fernandão Schettini fuma um cigarro no maior papo com Vicente Paladino e Elier Barreto. Zóstenes Vaz, na balaustrada da varanda, apreciando o movimento da rua e ainda não tirou da garagem a pick-up Rural para ir à fazenda. Ed Porto Alves já se mudou para a casa que era de Valentim Sarno.

As fogueiras de São João foram queimadas no dia anterior e Humberto Schettini pergunta para Chico, meu pai, se vai repetir a dose. Dôca ainda comenta e vibra com o último filme que assistiu. Alcides Batatinha manda entregar a encomenda dos talões de notas. Dona Fetinha já está com a cruzadinha na porta, em fila, rumo à igreja.

Pelo menos, no céu, tem um botafoguense, Fernando (Bigode) Schettini vibrando que o Botafogo ganhou do Bangu de Ulisses do rádio. Vicente Ventura continua anunciando as notas fúnebres, calculando as probabilidades de o Vasco ser campeão. Muita gente vestindo as roupas confeccionadas por Otoniel Costa e Armando Jacó, com as famosas sandálias de pneus fabricadas por Zé Cambuí. Tenente Celino, delegado, mantendo a ordem na cidade, daquela delegacia do Beco Apertado.

Na antiga praça Deocleciano Teixeira (atual Raimundo Pereira Magalhães), o velho Roque está com a padaria aberta, mas ainda lê uma passagem da bíblia antes de começar a trabalhar. Miriam Fagundes, sentada ao caixa, com a registradora de manivela novinha em folha. Miguel Labanca sobe, vai em casa tomar um café. Zé Martins abre as portas da loja de ferragem de Américo Libonati. Licinho Fernandes já está vindo e fumando o seu Continental sem filtro para abrir a loja dos Sarno. Irineu já está com as portas de ferro da “Alvorada” suspensas enquanto Armando Rolim puxa os ferrolhos da farmácia. Jaimevique inaugurou o armarinho. Emério Pithon e Miranda recebem o novo carregamento de brinquedos do Bazar Natal. Emilio Sarno na porta do armazém com o paletó sobre os ombros. Dr. Ari Dias joga gamão com Ademar da Sucam. Abel Magalhães, de suspensórios, conversa animadamente com Daniel e Zezinho Alves, vizinhos de negócios. Mem Fernandes Santos (Vei Nenen), de camisa abotoada até o pescoço, conta mais um “causo” para Pasquale Paladino.

A essa hora, o Padre Honorato já se prepara para celebrar a missa em latim. Só Tonhe Gordo escutará o que ele vai dizer. Dona Anina Sarno, Marianina Schettini, Rosina Libonati, Francisca Sarno e as irmãs Elza e Odete Lago são as fiéis mais assíduas. Pelas lojas, Seu Liquinho Macêdo, tranquilamente, distribui aos assinantes o novo número do quinzenal “Folha do Povo”.

José Sobrinho passa com as malas de jóias defronte a marcenaria de Giovanni Sola. Fernando Ruggiero Schettini acabara de se mudar para a casa da antiga rua Apertada. Seu Jambrim Gusmão, com a nova camionete, vai tomar café com Dona Amélia, sua filha. Ubirajara Pombal, jornal na mão, caminha calmamente para abrir o Banco da Bahia. Seu Amaro Elon, do outro lado, abre as portas do Banco do Brasil. Djalma Barbosa passa com o caminhão carregado, iniciando nova viagem. Adelino limpa a camionete americana que ainda tem a gasolina original de fábrica. Vicente Orrico Sarno está prestes a partir para Morrinhos com a Rural e o reboque carregado.
Pedro da Barreira, na varanda de casa, se benze quando toca o sino da igreja matriz. Lá vem Seu Lourival com os livros contábeis debaixo do braço, vai para coletoria de Carlos Rizério, Luiz Ribeiro e Bernardo Coelho. Ida Benedictis molha as roseiras do jardim enquanto Dona Julieta não pára de elogiar o progresso de Boa Nova. No seu novo Karman-guia vermelho, passa Ernesto Benedicts em direção ao fórum. Boêmia Marinho e a professora Zirinha juntas, estão indo para a Escola Alexandre Porfírio e para a banca da Lapinha, respectivamente. Teresa Martins traz de Salvador as novidades da língua portuguesa.

O cine Santo Antônio se prepara para um novo filme. Vavá e Nicola Leto aproveitam o dia para a manutenção do cinema. Tena já preparou o cartaz. Pedro França e Zé Paladino marcam a continuação de um jogo de bilhar na Visgueira.

Na praça da Igrejinha, o serviço de alto-falantes anuncia mais uma página musical. Afonso Manta escreve o novo poema no Sombra da Tarde sob os olhares de Elmano Barros Moraes. Samuel Abreu com o novo açougue. Floriz Neto sentado à porta lendo o jornal. Desde a cinco da manhã, o Sargento Severino faz aula de educação física para o pessoal do Ginásio. Ariomar Rocha esperando para começar mais um baba na praça da feira (atual praça da Festa).

A rotina da praça é quebrada com a construção de mais um pavilhão, sinal de que a “furiosa” banda de tio Nadinho está prestes a tocar. Espera só um sinal de Seu Cidinho na hora em que o leilão para. Já se ouve o som das pancadas da batuta no trombone de Antonio Fagundes, que aperta o nó da fralda na curva baixa do instrumento para aparar a saliva. O povo começa a se aproximar. É a vez de João Leiloeiro descansar. Mais um litro de uísque é consumido na mesa de Badinho, Zelinho Fagundes, Nenzinho, Quito, Edvaldo Miranda, Omar, Liligo, Dr. Ruy Espinheira e o velho Miga, grandes amigos. Vitinho Borba, com a sua Yashica, registra mais um momento da festa. De paletó e gravata, Antônio Leto chega de Conquista. Cícero Gusmão ofertou mais um bezerro.

Ao lado, nas barracas do pessoal do ginásio, os reservados estão cheios. Quem está lá? José Manoel, Carlos Nei, Vicentão, Juvencinho Lago, Heraldão Curvelo, Leonel Messias, a figura inesquecível de Miguel Antônio Schettini (Satobão) e Armando Manta com pinta de galã americano. A palha de arroz é o chão da praça.

Olha lá Mituca, com a barraca de laçar as garrafas com aquelas varas de pescar e argola de metal na ponta. Jogando, com as varas, Jônatas Fagundes e Aziz Galdino Freire.

Já é hora de voltar pra nossa Poções, a da terra. Mas antes, vamos passar no Bar de Arnóbio Andrade, tomar a saideira e ainda comer um pão com manteiga na padaria de seu Arlindo Cambuí.

Estamos com saudades de tantos que vivem por lá. Todos estão bem vivos nas nossas mentes e nas nossas histórias. Aproveitam o eterno descanso enquanto a cidade ainda não é invadida pelos blocos de carnaval em plena Festa e pelos monstruosos carros de som.

É isso, nossa sorte é que existe uma outra possibilidade – o céu!
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6 comentários:

  1. Jorge Dantas03 fevereiro, 2010

    Lulu,
    É uma ficção com todo perfil de realidade,você narra uma história em que todos os "artistas" tem os seus nomes originais.
    Muito bacana.....parabéns!!!!
    Jorjão.

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  2. Lulu,
    É impressionante a sua facilidade de narrar. Eu quando li"Poções não tão bem na terra como no céu" fui remetido ao meu passado, de quando morei no início da década de 60 em Poções. O seu registro é de uma veracidade, digna de nota e louvor. Parabéns, e continue exercitando este dom, que Deus lhe deu, para escrever ainda mais sobre Poções, cidade que marcou muito a minha infância.
    Att,
    Salvador Vaz

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  3. Gostei de ver um poçoence com grande amor pela nossa cidade
    gostaria que poçoes fosse sempre a velha poçoes pacata e calma nas noites que acabam
    poçoes sempre foi e sempre será a nossa grande cidade
    samuel silva de Guarulhos sp.

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  4. LULU, hoje 11/06/2021,li esta mensagem onde você faz-nos voltar ao passado! Obrigado por trazer, como num passo de mágica, minha infância em Poções! confesso que engoli várias vezes o nó na garganta! (kkk).
    Mas é isto, o tempo passa; nós também passamos e é inevitável. São os desígnios de Deus!!!
    ...voltei à AUTO-PEÇAS de Liligo na esquina do "beco dos Artistas, em frente da farmacia de Dr. Ary onde trabalhava.

    Muito obrigado meu amigo, um grande abraço,

    Eduardo Bloisi

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  5. Praça de Liberdade da minha infância e da minha adolescência. Depois, como me disseram, derrubaram todas as belas casuarinas. Protestei em crônica e em mais de um poema em livros. Aliás, Poções está presente em muito que escrevi e publiquei, inclusive contos e romances. Riqueza da vida, grandes saudades.

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  6. O autor é Ruy Espinheira Filho

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