"Se chorei ou se sorri, o importante é que em Poções eu vivi"

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Rua da Itália

Quando ainda escrevia no site Terradodivino, recebi o e-mail de uma leitora de Itabuna que se dizia impressionada pelo amor que nós, poçõenses, temos pela cidade. É verdade. O contexto e o tema sempre são os mesmos.

Numa cidade pequena, convive-se durante anos com o mesmo padre, prefeito e amigos. Freqüenta-se o mesmo bar e joga-se no mesmo campo de futebol. As raízes, naturalmente, fortificam-se e tornam-se sólidas a essa terra natal.

Evidente que todo interiorano tem a sua história. Poções teve histórias que diferenciaram tantas gerações. A paixão pela Festa do Divino vem da possibilidade e vontade de tantos se reencontrarem. Por isso, somos tão reticentes às mudanças e a evolução da mesma. Cada ano será um momento novo e vai se perpetuar nas mentes das novas gerações.

Mas, na minha cabeça, povoa a Rua da Itália, a rua onde nasci e fui criado em meio a tantas batalhas de badoques travadas pela geração anterior, a de Eduardo Sarno, como bem descreve no seu opúsculo lançado drante a Festa do Divino de 1988 e no blog http://www.familiasarno.blogspot.com/ . A minha geração já usava badoques para caçar passarinhos, calangos e derrubar frutas. Lógico que Antônio Celso Sarno levou mais tempo dando umas badocadas na gente. Mas, a rua fascinou por longo tempo e nossas histórias mostram esses aspectos em épocas diferentes.

Eu me lembro de uma Rua da Itália mais moderna, começando na esquina do Beco Apertado - a esquina da Farmácia de Dr. Ari Alves Dias.

Subindo a rua, sobre o passeio de ladrilhos furadinhos, ao lado da farmácia, existia a coletoria estadual onde passaram coletores como Rufino, Carlos Rizério Lima, Luiz Ribeiro, Badinho Marques e outros.





Fernandão Schettini, filho de Rafael, já tomava conta do armazém, que era um ponto de comércio de peles e mamona. A relíquia de cor verde ficava estacionada no interior – uma camionete americana da marca Fargo. Lembro do velho Rafael Schettini, com vistosos suspensórios, calça branca e gravata, sentado no escritório.

Ao lado do armazém, a casa de Dôca. Tinha uma oficina na garagem lateral e uma borracharia comum aos filhos – as forças dos pneus eram por ordem de chegada – cada filho tinha a sua vez e remuneração própria. Convivi com Tonhe, Paulin, Bada, Eraldo e Zé. Marcos, Marília, Adriana e Alex foram da geração mais nova. Eram constantes as presenças de Jeep´s, Rurais Willys e jipes Land-Rover de capota metálica, todos para consertos nas caixas de marchas e/ou descarbonização de motor. Acompanhava as desmontagens peça por peça. Vem daí o meu interesse e a iniciação na mecânica.

A casa deles era ligada à nossa. Ficávamos conversando horas dentro dos jipes e simulando as marchas. Vez ou outra, um jipe descia a ladeira e, sem freios, ia parar no posto de Miguel Labanca. Dôca balançava a cabeça, mandava empurrar pra pegar no “tombo” e novamente estacionar na frente da casa.

Já no primeiro ângulo da rua, começava o armazém de Fernando Schettini, filho de Miguel. Imensas pilhas de sacos de café e mamona para serem comercializados, mas antes o “caumonio aí” rolava solto. Os carregadores tinham trabalho intenso.

No mesmo prédio do armazém funcionava a oficina de rádios de Carlito Torres. Carlito, além da função técnica, tinha uma missão importante e interessante – era juiz de paz. Casais que brigavam eram apaziguados por ele.

A casa de Zóstenes Vaz era o ponto de apoio das nossas brincadeiras. Lá fazíamos circo, acampamento, fábrica de doces, balas e extrato de tomate. Zostinho, seu filho, era o estrategista e empreendedor da turma. Todo jogo de memória (resta 1, xadrez, etc.) era trazido por ele quando transitava em Salvador.

Minha segunda casa era a de Corinto Sarno, meu tio. Como os netos dele só apareciam uma vez por ano, eu dominava todos os espaços. Eles viajavam muito para Salvador e me davam a tarefa de “dar milho para as galinhas”, colher as goiabas, as imensas mangas e as uvas. Em troca, eu podia sentar na cadeira de balanço e ficar horas ouvindo a Rádio Globo até que se iniciasse a “Voz do Brasil”.

No beco ao lado, só havia o escritório da Coelba, que ficava logo atrás do cine Jóia, um imenso depósito de materiais de Fidélis do Arroz, onde hoje é um banco.

O calçamento chegava até a entrada do beco da usina de beneficiamento de arroz. O prédio da Prefeitura era uma obra imponente e abrigava o escritório do IBGE, que era chefiado por Vicente Ventura, um ferrenho vascaíno e também locutor do sistema de alto-falantes.

No sentido contrário, do outro lado da rua, a Igreja Batista. A casa de seu Alcides Fernandes era bem ao lado da Igreja.

Defronte a Prefeitura, a casa de Luiz Sarno. Ali era uma central de distribuição do leite que vinha da Fazenda Caititu na camionete Ford amarela. Sem dúvida, o melhor quintal de Poções - tinha todo tipo de frutas. Uma construção chamava a atenção – a cobertura da garagem era um belvedere com a vista maravilhosa para a Lapinha e a baixada das gramas.

Descendo no sentido da praça, a casa de Carlito e Uchinha. Ela foi a responsável pela idéia de vender pastéis em tabuleiros de madeira, iniciando um novo sistema de vendas em Poções. Jorge (Diucha) era da outra geração, mas gostava de andar com a gente.

O fórum era uma das atrações da rua. Da janela, sobre paralelepípedos amontoados, assistíamos aos grandes júris com a participação de Ernesto Benedictis, Ruy Espinheira, Carlos Nápoli e tantos outros que ali passaram. Eram brilhantes com aquelas togas. Também ali se guardavam e se apuravam os votos das urnas eleitorais.

Depois da ladeira que dava nas gramas, tinha a casa de Américo Libonati. Uma moderna construção com amplas salas e quartos. Brincávamos muito com Zé Américo nas suas férias. Sérgio e Paulinho ainda eram crianças.

A casa de Vicente Palladino tinha uma particularidade. Ele e Dona Teresa só tiveram filhas e todas usavam cabelos longos.

A casa de Fernando Schettini e Stella também era uma construção em estilo moderno. O movimento maior era no varandão, quando os netos Benício e Rafael Frazão, Rita e Rafaelzinho apareciam nas férias. A casa ficava sempre aberta e a varanda cheia com as presenças de Deolino Frazão, Dona Teresa, Elier Barreto e Dona Adelina. Marco Antônio e Rafael eram pequenos. Essa casa era o nosso quartel nas brincadeiras de bandido e policia.

Devido ao desnível da rua da Itália, estas três casas possuem áreas de serviços e porão.

A casa que pertenceu a Valentim Sarno fora vendida a Ed Porto Alves e cessaram as possibilidades de exploração do quintal.

Emilio Sarno era o próximo vizinho. Também pouco freqüentei a exceção dos aniversários ou nas visitas aos tios.

O casarão dos Schettini ainda permanece com as mesmas características. O portão, com as iniciais de José Schettini, impressiona pela beleza da arte. Quando eu abria a porta de casa, avistava a figura do Seu José, no degrau, com a capa colonial. Soube que a capa está com Remo e quando for a Poções ele prometeu que vai vestir para refazer a cena histórica.

Outro local onde circulava livremente era a casa de Fernando e Aracy Schettini. Sempre os acompanhava nos jogos do Atlético no campo da Rua de Morrinhos e no cine Santo Antônio, onde as cadeiras da terceira fila, ao lado da parede, eram reservadas para nós. Zé Marinho era o grande amigo contemporâneo, mas eu era colega de Fernandinho. Pepetinha foi minha professora de Português na banca e no ginásio.

Não posso esquecer de Dona Fetinha Marinho, a mãe de Aracy. Ela foi a responsável pela introdução religiosa de muita gente boa, com a condução impecável da Cruzada Eucarística. A pequena ala direita do altar mor da Igreja Matriz sempre foi o local da “cruzadinha”, como ela mesma chamava.

Dezinho trazia o leite da fazenda deles em Morrinhos para ser comercializado em Poções. Sobre um jegue, era pouco provável ir a Morrinhos e não encontra-lo na estrada.

Finalmente, no último prédio do outro lado da Rua da Itália, a Tipografia de Alcides “Batatinha”. Ali eu matava o meu tempo livre. Admirava todas as funções. Todo mundo fazia tudo. Zé Armando era o tipista principal e eu ficava admirando os clichês prontos com as letras montadas ao contrário. Joel de Jacó operava a máquina de impressão, Jessé dava o acabamento final na guilhotina e João Batatinha, além de excelente jogador de futebol, supervisionava a tudo e a todos. O barulho da máquina de estampar e o mecanismo de renovação da tinta me fascinavam. Dali saiam os panfletos dos políticos, os talões de notas e um periódico com notícias de Poções redigidas pelo Seu Alcides.

O sobe e desce da Rua da Itália ainda é muito interessante. Grande parte da vida da cidade sempre circulou por ali. Circularam gerações, circulou a história de Poções e circulará o futuro.

Assim, a gente entende por que o amor que temos por essa cidade é fraterno e eterno, como numa grande família. Mas ainda sinto saudades das fogueiras de São João, da tradição dos envelopes com dinheiro na passagem de ano, da exibição de presentes no dia seguinte à noite do Natal e dos vatapás e carurus que ainda recebemos dos nossos vizinhos na Semana Santa.

Um dos poucos símbolos da presença italiana continuará aí, resistindo. O comércio avança sobre ela. Os filhos da Rua da Itália estão pelo mundo afora. Mudaram a placa para Rua Itália. Não mudaremos a história. As minhas lembranças serão eternas.

Serão eternas, também, as lembranças dos meus amigos de infância, alguns deles referenciados acima.

4 comentários:

  1. Elisa Sangiovanni22 janeiro, 2010

    mano,
    Você foi perfeito nesta!!!!!
    Curti cada detalhe e revivi velhos tempos
    Sua memória e capacidade de descrição está demais.... Agora vc prova que não precisa ser o "melhor aluno" para ser o melhor na vida!!!!
    bjs
    Elisa

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  2. Lulu, amei cada linha que ia lendo. Vc realmente nos transporta para épocas vividas e que ficaram esquecidas em nossa memória. Parabéns!!! Presenteie-nos sempre com textos dessa ordem. Ajuda-nos a ver o mundo sob um outro prisma. Bjão!!!

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  3. Poções tem mais de cem anos,Muitas Histórias e trabalho que é bom nada os poçõenses ainda hoje século 21 esperando fábricas????? até agora não entrou uma Porra dum prefeito que presta caramba Mano.

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  4. Que linda lembrança,lembro da minha infância...achava linda as casas que você descreveu no texto.Eu falava para meus irmãos ,"olha só as casas dos ricos" pois eu morava no bairro Primavera e era muito humilde.

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