"Se chorei ou se sorri, o importante é que em Poções eu vivi"

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Mentira tem perna curta

Quando mudei definitivamente para Salvador, morei uns dias no pensionato de Dona Anísia, ali na Rua Direita da Piedade, 9. Eu já conhecia Salvador muito bem, vinha aqui passear, comprar pilhas para o aparelho de surdez do Padre Honorato e as turmas de amigos faziam ponto na entrada da Araújo Pinho, no bairro do Canela, e no Edifício Cidade de Saúde, defronte ao Colégio Severino Vieira, onde morava a família Exler, os alemães de Poções.

Era hora da verdade. Tinha que encarar o curso de Estradas na Escola Técnica Federal, criar uma nova turma e fazer jus por ter passado no vestibular. Do pessoal do Ginásio de Poções, só restou meu primo Miguel Sola, que passou para o curso de Mecânica. Antes, fomos informados que deveríamos "raspar" a cabeça, pois o trote aconteceria durante a matrícula ou nos primeiros dias de aula. Assim, poderíamos passar despercebidos.

Chegou o dia da primeira aula. As turmas eram de 40 alunos por curso e a professora pediu para que cada um se levantasse e fizesse breve apresentação pessoal dizendo onde havia estudado anteriormente. Nas vozes de cada colega, não identificava ninguém que tivesse vindo do interior. Achei que deveria seguir a mesma linha – não dizer que era de Poções - talvez por timidez e mentir seria mais fácil driblar a pressão de momento.

Chegou a minha vez quando mais da metade da turma já havia se apresentado e as falas iam ficando mais reduzidas. Eu disse: “sou Luiz e estudei no Colégio Severino Vieira”.

Foi o bastante para ouvir a voz da minha colega Acácia dos Santos Gomes: “Seeeveeerino Vieeeiiiira? Eu também estudei trêêês anos e nunnnca te vi por lá”. O chão abriu e confesso que quase chorava – não podia! Pensei rápido e respondi gaguejando: “Éeee, eu estudava no turno da noite, deve ser por isso” Não é que a mulher insistiu e respondeu: “Eu também estudei a noite”.

Com isso, aprendi o tamanho e o formato das pernas da mentira pública – curtas e tortas. Passado aquele momento de alívio da pressão de Acácia, eu caí na realidade e fui perceber o que tinha feito com o CNEC, o Ginásio de Poções. Que consideração barata e que falta de humildade.

Chegou o momento de refazer a “área” e caí em campo. Fui descobrindo que muitos haviam mentido da mesma forma que eu. Leones era filho de Simplício Colombo Gomes, então prefeito de Tapiramutá. Nabor veio de Serrinha. "Todo Feio", de Alagoinhas. "Do Molho" (o cara usava brilhantina no cabelo), era de Catu. E aí vai. Tinha gente de Caculé e Brumado.

Como a Escola era no Barbalho, próximo da antiga Rodoviária, toda sexta feira a gente descobria mais um mentiroso pegando o ônibus para o seu interior.


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quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Tiro de Guerra

Se tem uma coisa em Poções que eu não fiz foi “servir o Tiro”.

Quando me alistei no serviço militar, já morava em Salvador e fui incluído no “excesso de contingente”. Cheguei perto. Por uma questão banal, o soldado que organizava as filas não foi com a minha cara e me jurou, dizendo: “Pode se preparar, eu quero ver você limpando canhão no Forte de Mont´ Serrat!” Já havia tomado as medidas do capacete, botas e farda.

Juro que perdi a vontade e fiquei me lembrando do Tiro de Guerra 135. Senti que daquela forma não daria certo. Aí, um Tenente de nome Lorenzoni, viu as medidas na ficha e perguntou por que queria servir. Respondi que gostaria, mas estava cursando a Escola Técnica e que um soldado havia jurado o meu destino. O tenente, também filho de italiano, entendeu a minha situação, me dispensou da tarefa e frustrou a vontade daquele soldado predestinador.

Quem também suou frio nesse dia foi Ebenezer Fagundes Ferreira (Déo). Juntos, cruzamos os dedos e aguardando a confirmação que estávamos fora das listas de convocados. Já na semana seguinte, liberados, a gente estava jurando a bandeira na 17ª CSM, na Barroquinha, lembrando do soldado.

Ainda em Poções, tive contatos com algumas turmas do TG. Nas tardes de sábado, o Sargento Severino dava “banca” da língua francesa depois da “instrução aos atiradores”. Eu chegava cedo e ficava esperando a instrução terminar. Na verdade, gostava mais de ouvir as instruções do que assistir aula de Francês. Terminada a sessão, os soldados eram liberados para engraxarem os coturnos (botas), pois no domingo deveriam assistir à missa celebrada pelo Padre Honorato. Com essa rápida convivência, eu gravava os números deles, que era como se identificavam.

O contato maior era nas comemorações cívicas, principalmente nos 21 de abril e 7 de setembro. Logo de manhã, a turma do Ginásio se concentrava no CNEC. Lá estava Renan Macêdo organizando as filas por ordem de tamanho, com o grupamento do pessoal do curso Normal à frente, os homens na seqüência e depois as mulheres. Entregava as bandeiras para os divisores de pelotões e então partíamos para nosso primeiro destino que era a porta do TG. De longe, já avistávamos os atiradores em posição de “descansar”, com os fuzis agrupados em três, desde as 6 da manhã.

Todos nós aguardávamos ansiosos pelas chegadas de Francisco Paradella, Diolino Luz, Monsenhor Honorato, Irmã Bernadete, o próprio Renan, Dr. Ernesto Benedicts, Tenente Celino, Dr. Irundy, Pastor Isaías e demais autoridades. Com eles, estavam representadas as classes civis, militares e eclesiásticas. Se faltasse um, a gente tinha certeza que a cerimônia ia ter um discurso a menos.

Na seqüência da cerimônia, chegava a Bandeira Nacional. Era trazida de dentro da sede do TG pela guarda especial comandada pelo Sargento Severino, vestido com a roupa de gala e lapelas cheias de gemas. O silêncio era total e escutávamos o barulho dos coturnos batendo ao chão, os comandos de “sentido” e “apresentar armas”. A bandeira era hasteada e o corneteiro se posicionava para anunciar a hora do hino nacional.

Renan assumia a posição de mestre de cerimônias e chamava as pessoas para o discurso. Quando os oradores oficiais terminavam, ele anunciava: “a palavra está franqueada”, todo mundo ficava na expectativa para saber quem seria o próximo orador. Sempre aparecia alguém sacando um discurso do bolso e arrumando os papéis na mão. A gente já sabia de cor (e salteado) a introdução do mesmo.

Beirava às 10 da manhã, sol de rachar. Um barulho e movimentação anormal no meio dos atiradores. Era um deles que não aguentava e caia ao chão. O barulho era peculiar – primeiro, o fuzil caía e, na seqüência, o corpo desabava. A gente espalhava entre os colegas – o 19 deu um “abacate” (acho que o termo abacate foi aplicado devido à cor verde da farda e o cidadão espatifar ao chão).

Discursos encerrados, todas as entidades presentes estavam liberadas para o início do desfile. A depender da ocasião, existiam estudantes vestidos de índios, caçadores, atletas, sem contar as bicicletas enfeitadas de papel crepom. Era uma festa. Além do Tiro de Guerra e alunos do Ginásio, desfilavam as escolas primárias, os times de futebol e algumas associações de classes. Era tanta gente que, enquanto o primeiro pelotão passava em frente ao posto de Miguel Labanca, ainda havia gente saindo da frente do TG.

Desfilar nas ruas da cidade tornava-se uma demonstração de civilidade e respeito à pátria. Passar a bandeira e um cidadão ficar de chapéu ou sentado? Nem pensar. Não saber cantar o hino nacional? Imperdoável. Qualquer gesto da população contra estes preceitos era de imediato observados por nós, estudantes.

O dia de marchar era esperado durante todo o ano, dia da nossa demonstração de civilidade. Hoje, essa simbologia acabou. Passamos a assistir, impotentes, a violência desenfreada, a impunidade, o descrédito da classe política e o império da lei do mais forte.

Mas acho que continuamos a marchar. Estamos marchando para o fim do mundo...

Essas lembranças são dedicadas a Jônatas Fagundes Ferreira (Jota). Um grande amigo, exemplo de simplicidade, comandante do “fim da fila”, companheiro de tantas horas e meu insistente professor de corneta. Pessoa de humor contagiante entre os nossos amigos do Ginásio e os de convivências comuns.

Nos deixou precocemente. Restam as lembranças e as saudades!”




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domingo, 13 de dezembro de 2009

Feliz 1973

Revendo fotografias de 1973, fui buscar no tempo (aliás, no Google) o que aconteceu naquele ano:

- Morreram três Pablos – o Neruda, o Casals e o Picasso;

-A Grã Bretanha, Irlanda e Dinamarca passaram a integrar a Comunidade Européia;
- Armando Marques errou a contagem dos pênaltis na partida final entre Santos e Portuguesa, que acabaram campeões paulistas daquele ano.
- Ocorreram seis Ba-Vi´s – Vitória ganhou três e o Bahia apenas um. O Bahia foi o campeão;
- O piloto François Cevert morreu no treino do grande prêmio da F1 dos USA;
- O estudante Alexandre Vannucci Leme foi morto por policiais do DOI-CODI;
- Polícia Federal proibiu 46 revistas estrangeiras e 14 nacionais;
- O General Médici era o presidente da República e assinou o acordo para a construção do gasoduto entre Santa Cruz de la Sierra e a Refinaria de Paulínia-SP;
- ACM era o Governador da Bahia.
- Surgiu o grupo musical Secos e Molhados. Riachão lançou seu primeiro LP;
- Salvador Allende, socialista chileno, foi morto em 11 de setembro (!) pelas forças comandadas por Pinochet;
- A banda Led Zeppelin fez a mais lucrativa turnê da história – 3 milhões de dólares;
- A inflação no país era de 15%;
- As reportagens internacionais chegavam ao país via Varig;
- Raul Seixas lançou o LP Krig-Há Bandolo;
- Lula era secretário do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo;
- O cantor Evaldo Braga morreu vítima de acidente de automóvel;
- O Maverick e a Brasília tiveram as suas fabricações iniciadas;
- Pedro Alves Cunha assumiu o segundo mandato como prefeito de Poções.

Feliz 1973? Foram tantas as notícias ruins. Passávamos por uma situação que chamavam de “anos de chumbo”. A imprensa era muito perseguida, havia censura para tudo que se escrevia.

Como na maioria das cidades do interior, o rádio trazia mais rapidamente as notícias. A televisão em Poções já era uma realidade, mas vivia constantemente fora do ar devido às retransmissões torre-a-torre. Uma ligação telefônica demorava dias para ser completada. Ninguém conhecia um micro-computador.

Poções, na verdade, era um mar de tranqüilidade para nós jovens, mesmo com a repressão às ideologias políticas dos militantes no país e pela ausência de recursos tecnológicos.

Passávamos as férias entre a sinuca do bar de Duca, o pão com manteiga de Arlindo, o banho de rio na Cachoeirinha e, à noite, improvisávamos uma seresta no Coreto ou no jardim da praça. Outra opção era fazer uma “festa” na casa de alguém - bastava uma radiola portátil, alimentada a pilha. Eram ambientes propícios para “fumar escondido” e beber cachaça, literalmente.

Nossa turma usava cabelo comprido até os ombros ou o famoso “black-power” no estilo Antonio Celso, penteado rigorosamente com aqueles pentes de arame chamados de pata-pata. Na moda, a camisa de “banlon” com gola cacharrel e o cinto largo, de couro, com uma fivela imensa na calça apertada e com a boca de sino.

Apesar dessa descrição de jovem avançado da época, vivíamos um tempo onde as famílias participavam de tradicionais festas como o Reveillon e o Carnaval, sendo muito comum fazerem a passagem de ano no clube social. Costumeiramente, as mesas eram compradas sempre pelas mesmas famílias por causa do relacionamento entre si e da possibilidade de juntar uma à outra. Só modificava essa posição das mesas quando na festa anterior houvesse rolado uma briga e, nesses casos, a própria direção do clube se encarregava de fazer a estratégica mudança, evitando o encontro dos desafetos.

Era muito bonita a confraternização à meia noite. Até o final da festa, todos já deveriam ter dado um aperto de mão ou abraço e o desejo de um feliz ano. Renovava-se a amizade, o respeito e o apreço pelo outro para mais um período.

Percebo que essa atitude perdura-se até hoje. Quando encontro pessoas daquela época, parece que elas têm o mesmo sentimento de que o tempo não passou.

Feliz 1973. Feliz 2010 a todos nós.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Nós e os doidos...

Lendo o livro “O Futuro da Humanidade”, me lembrei daqueles que chamavamos e achavamos que eram “doidos” em Poções. Durante as férias, enquanto não tínhamos nada para fazer, ficavamos no jardim conversando com eles e procurando saber e entender por que haviam chegado naquele ponto. As histórias de vida eram muitas e, como no livro, o mundo deles também totalmente diferente do nosso. A “humanidade” não soube e não procurou entende-los. Não foram resgatados por nós. Certos ou errados, viveram à margem da sociedade.

Restou saber em qual Poções eles viveram. Se as suas histórias não foram compreendidas, eles passaram a fazer parte da história da cidade, naturalmente.

Quem vai dizer que existia maldade em Isaulino? Usava uma calça sem cinto, apenas duas reatas amarradas com um barbante e, muitas vezes, suja de fezes. Descalço, pés rachados, camisa toda rasgada. Uma mão segurava a calça e a outra carregava o saco cheio de latas, puxando um dos pés para trás. O caneco era para pedir água ou café. Possuía olhos claros, falava pouco e baixo. Gesticulava na maioria das vezes como a pedir dinheiro e comida.

Menos maldade havia em Cumpadinho. Sol a pino, vestia um casaco de frio. Vivia sentado na calçada defronte a casa de Fernandão, esperando por um prato de comida que era dado por Dona Marianina ou por tia Stela. Cabelos brancos penteados, ele desaparecia nos finais de tarde.

De uma agressividade aparente, com um porrete na mão, Paulina usava para se defender de possíveis brincadeiras de quem ela atacava com seus discursos. Também carregava um saco e nele a sua vida. Falava sem parar, cabelo envolto em um velho lenço furado. Diziam que Paulina era uma pessoa normal e que depois ficou doida, de repente. Foi inspiração para um poema de José Onildo que se chama “A noiva da cidade”. Nunca consegui lembrar se Paulina era a mascate que comprava mercadorias em São Paulo para revender de porta em porta – tenho dúvida.


Se havia uma doida simpática ela se chamava Josina. Muitas vezes acompanhei suas conversas com a minha irmã Elisa. As duas tinham uma admiração especial e pegava carona nas histórias. Sofria de uma grande depressão pela perda do marido. Transferiu toda carga emocional para o filho Nuguinha.

Outro dia, em Morrinhos, encontrei com Ivan, que também era chamado de doido. De doido não tem nada. Talvez seja quem acha que ele não gira bem. Passou anos trabalhando em São Paulo. Tremenda lucidez, queimado pelo sol, diz que ganha a vida catando ferro velho. Na verdade, tem sua rocinha de feijão.

Sentado na porta do bar de Duca e todo maltrapilho, a gente encontrava Dió. Madrugada, quando o ônibus ainda entrava na cidade, era a única alma viva sob aquele frio de rachar. Caolho, diziam que era a marca de valentia. Defendeu-se de uma invasão na sua fazenda e levou um tiro no olho. Pouca conversa, adorava receber um cigarro e carregava uma lata para tomar café. Durante o dia ele sumia.

Quem dissesse “pára João” ao varredor de ruas mais simpático que Poções já teve, ia ver inerte a figura de João. E João só continuava a varrer se ouvisse o comando “varre João”. Se estivesse empurrando o carrinho de mão, acontecia a mesma coisa – ficava inerte com o carrinho no ar até que alguém dissesse o novo comando.
Maldade em João? Não, maldade nossa.

Toda quinta feira era o dia oficial da esmola, uma convenção que se perdeu no tempo. Lá na loja, na gaveta do dinheiro, já estavam separadas as notas e as moedas para as esmolas. Madalena era uma pedinte que andava descalça e apenas levantava a mão, sem dizer uma só palavra. O gesto era tradicional e só baixava o braço depois que recebesse a sua parte.

De nome exótico, aparência jovem, sempre penteado a moda Elvis, Véi de Zé Galo era o galã (nada a ver com o galo). A fama de tarado ficou e toda mulher tinha medo de encontrar com Véi na rua, principalmente no Beco dos Artistas. Contam da sua relação com um jumento e que fora “abotoado”. Ao passar pela Cônego Pithon, gritou socorro a Liligo Moraes e foi instruído de como se libertar. Seu concorrente de fama de tarado era Tonico. Esse aí, subia e descia a Rua da Itália umas trinta vezes por noite. A fama e a ameaça eram folclóricas, pois nunca se soube de registro oficial de algum “fato consumado”.

O certo é que os Isaulinos, Cumpadinhos, Paulinas, Josinas, Ivans, Diós, Madalenas, Véis de Zé Galo e Tonicos da vida vão continuar a viver marginalizados pelo mundo afora, sem a oportunidade de amenizarem a dor, recuperarem a auto-estima e transformar os sentimentos em esperança.

Assim é a humanidade.

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