"Se chorei ou se sorri, o importante é que em Poções eu vivi"

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Uma casa de velhinhos...

Dona Pureza era a mais exaltada do asilo. Hora da merenda e ela queria tomar o suco na caneca branca, a que tinha o seu nome. Ninguém achava a caneca e ela insistiu em um tom mais alto para que procurassem. Tentaram dar o suco em outro recipiente parecido e ela não quis saber.

Só parou de reclamar quando Lala e Edu começaram a tocar. Como música acalma as pessoas, isso estava estampado no sorriso do rosto largo de Dona Rita, outra moradora do asilo, nos seus 70 anos, sentada em um cadeira de rodas.

Terminada a primeira música, Rita perguntou: Como é o nome dessa música? Lala respondeu que se chamava Amor te Matar. Ela deu uma gargalhada e disse: Isso é nome de música?? Né boa não, continuando com a gargalhada.

Neste ano, resolvemos dar uma trégua a Papai Noel. Pedimos para que ele não trouxesse nenhum presente para as nossas casas. O acordo foi selado e todos da família Fagundes participaram - o dinheiro de cada presente seria gasto na compra de mantimentos para um asilo ou instituição de pessoas carentes. Edu e Lala, nossos artistas da música, tocariam e cantariam para animar o dia daquelas pessoas.

Essas manifestações de Pureza e Rita demonstram o bom clima e a harmonia existente entre as 35 mulheres e 60 homens, todos moradores do lugar. Mas, demonstram, também, a carência afetiva, o abandono das famílias e a necessidade de mais ajuda em todos os sentidos. É nessa hora, de coração apertado, que a gente enxerga o descaso do nosso país com pessoas idosas naquelas situações. Faltam os programas e as políticas públicas. Enfim, pessoas que o próprio mundo tenta descartar da sociedade, encontram outras que dedicam parte da sua vida para cuidá-los.

Enquanto a apresentação musical acontecia, em mim havia o misto de alegria e tristeza – alegria em ver como as pessoas vivem naquele momento - harmoniosas e cuidadas; tristeza por compreender que aquele tipo de abandono tende a crescer e, cada vez mais, teremos que contar com a caridade para solucionarmos os problemas em torno do nosso mundo.

Poucos conhecem essa realidade. Veio o sentimento de que doar bens é apenas muito pouco. Aquelas pessoas precisam mesmo é de carinho.

Uma senhora, sentada em outra cadeira de rodas, me fez lembrar daquilo que minha mãe chamava há dezenas de anos atrás, aí em Poções – a casa das velhas. Eram senhoras idosas abandonadas, com pouca mobilidade,  que algumas famílias se acertaram e cada dia levavam a comida para elas. A casa ficava no bairro do Tigre.

Outra casa, na Lagoa Grande, era de três senhoras cegas. Ali, as dificuldades eram maiores e os descuidos com a higiene eram evidentes pela própria deficiência visual.

Meu papel era acompanhar as minhas tias. Eu não imaginava que aqueles gestos de solidariedade ficariam marcados como os primeiros na minha vida. Depois, vieram as freiras para Poções e elas assumiram esse papel na nossa sociedade.

Na tarde de hoje, uma senhora nos conduziu por todos os quartos dos moradores daquele asilo. Ela aparentava os quase 70 anos de idade e um vigor físico impressionante fazia subir e descer escadas. Falava com todos eles de forma a ser atendida como transitasse por aquele lugar há anos.

Com um ar sereno, seus cabelos brancos e rosto gasto pelo tempo, aquela senhora tinha uma única função - de voluntária, decidida a dar todos os seus domingos para os velhinhos da Accabem, a instituição. 

Moradora vizinha do local, ela disse que a sua disponibilidade e dedicação era o que tinha no momento para ajudar àquela gente carente. 

Anônima estava e anônima se manteve.Uma lição de vida para todos nós nessa tarde.


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