Por
ironia, sempre tive ideias políticas e religiosas transversas com as de Affonso
Manta Alves Dias. Na época em que eu estudava no Seminário Menor de Amargosa,
ele era marxista. Conversávamos muito e havia comentários em Poções de que não
ficava bem um rapaz que estudava para ser padre, ajudava a missa e usava batina,
conversar tanto com um ateu. Mas nossos temas versavam sobre filosofia e
teologia e lembro uma vez em que, andando na Rua da Itália, indo para a praça
do Obelisco, Affonso me expôs a teoria dos macacos datilógrafos, para refutar a
ideia do homem ter sido criado por Deus. Tratava-se de demonstrar a criação
como mera casualidade: se cem macacos ficassem datilografando durante cem
anos, certamente um deles escreveria uma frase lógica. Como ainda não se
completaram os cem anos, deixemos os macacos digitarem em paz...
Anos
depois, quando retornei de uma etapa das minhas atividades políticas
clandestinas contra a ditadura militar, e já com uma formação marxista
consolidada eis que encontro Affonso transmutado em místico medieval,
profundamente religioso na teoria e na prática. Fiquei a me perguntar se era o
misticismo algo tão forte que havia arrebatado Affonso ou se ele havia acedido
por fraqueza. Mas eu não precisava destas respostas, pois sempre houve entre
nós um grande respeito pelas ideias e vivências.
O pai
de Affonso era Dr. Ary, dono de uma das principais farmácias de Poções, onde,
às tardes, os aposentados e amigos jogavam gamão na calçada. Esta paternidade
identificava, para os poçoenses a ascendência, pois era conhecido como Affonso
de Dr. Ary.
Convivi
com Affonso também em Salvador. Certa ocasião, numa manhã de sábado, ao passar
pelo Cine Guarany, na praça Castro Alves , fui chamado por ele, que estava
sozinho em uma mesa do Bar Cacique. Pedi uma cerveja e entre um papo e outro
Affonso ia chamando para a mesa todos os amigos e conhecidos que iam passando.
Passava do meio dia, mesa cheia, muitas “brahmas”, Affonso levanta-se,
cumprimenta a todos com uma expressão paternal e vai-se, esquecendo a
“dolorosa” para ser “rachada” entre os amigos!
A
Ladeira dos Aflitos com suas pensões era o local ideal para os estudantes do
interior. Por lá passaram Vicente “Cheiroso” Sarno, Antonio Libonati, Geraldo
Sarno e o nosso caro Affonso Manta. A
sistemática de Affonso era gastar em farras com os amigos a mesada que Dr. Ary
mandava, atrasando o pagamento do aluguel. Apesar da compreensão de alguns
proprietários, depois de alguns meses ele era despejado e lá se ia Affonso com
colchão e mala na cabeça instalar-se na pensão vizinha. Quando este recurso foi
esgotado nos Aflitos ele teve de ir para mais longe e chegou até o Corredor da
Vitória, na Avenida Sete. Lá havia o pensionato do padre Torrend, jesuíta, e
Affonso , confundido com os estudantes que ali moravam instalou-se no sótão do
grande sobrado. Quando, meses depois foi descoberto, alegou que só sairia dali
se falasse com o diretor, pois, conhecia seus direitos. Informado pelo
secretário que o diretor estava em Roma, no Concílio, foi condescendente e não
criou caso: “- Pois eu espero ele chegar”, disse ele.
A
nossa turma de Poções, Ruy, Tuna e Gey Espinheira, Eraldo Curvelo, Zé Fidelis,
Pietro Sangiovanni, o “Pepone” sempre se
reencontrava em Salvador e era época das farras ditas “homéricas”, por Ruy. Uma
delas teve início no Mercado Modelo. Lá eu havia comprado uma bengala de
jacarandá, daquelas que eram feitas na Penitenciária Lemos de Brito. Na
sequência decidimos continuar a beberrança em um bar na Rua da Ajuda, no
centro.
Affonso
disse que podíamos ir na frente, que ele iria depois. Pediu emprestado minha
bengala e meus óculos escuros, e disse que iria de olhos fechados !
Copos
depois chegou Affonso na Ajuda. Jurou que não havia aberto os olhos e que as
pessoas foram muito prestativas. O guarda de trânsito parou o tráfego e alguém
lhe pagou a subida no Elevador Lacerda. Na ocasião Affonso nos brindou, e aos
demais frequentadores do bar, com a declamação do Cancionero Gitano, de Lorca.
Da
Ajuda, onde tivemos de deixar um relógio penhorado a troco de bebida fomos para
a Praça da Sé. A madrugada foi nos encontrar no Terreiro de Jesus, onde
presenciamos uma cena inusitada. No meio da praça tem uma fonte, e um negão bem
vestido empurrava uma negona de volta para dentro da fonte toda vez que ela
tentava sair. Affonso,
sensibilizado, dirigiu-se para o negão e
disse :
“-
Meu senhor, com licença, por que o senhor está empurrando esta senhora para
dentro d’água, evidentemente contra a
sua vontade?”
O
negão surpreso nem teve tempo de responder, quando a negona gritou de dentro
d’água:
“- O
negão é meu e ele me empurra quantas vezes ele quiser e você não tem nada a ver
com isso!”
Affonso,
pacato, calado, vencido, retirou-se.
Bondoso
e socialista era comum alguém receber de Affonso um livro de presente, com
dedicatória e depois descobrir, na página seguinte o nome do proprietário. Ruy
já recebeu um livro que era dele mesmo!
Affonso
trabalhou por uns tempos como guia no Museu de Arte Sacra, no Sodré. Era
extremamente agradável ir lá às tardes conversar com ele e acompanhar os grupos
de turista que ele, demonstrando um conhecimento profundo, guiava por
corredores e salas.
De
uma cultura que honra Poções, Affonso é sobretudo um poeta. Não se sabe porém o
que isso significa. Pensam alguns poçõenses que poeta é quem conversa com as
andorinhas que ficam no beiral da velha Igreja
Matriz do Divino Espírito Santo.
Jan/98
Nota do blog:
Essa crônica foi lida pelo autor na ocasião do lançamento do livro de Affonso Manta. Eduardo é poçoense, historiador, livreiro, proprietário da livraria de livros usados, a Grauna. Meu primo especial e também primo de Ruy Espinheira Filho. Colaborador, comentarista e entusiasta do Blog do Sangiovanni, a quem agradeço pela gentil colaboração para publicação nesse espaço.
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSe na época em que o Affonso era marxista, já tivesse sido descoberto o bóson de Higgs, pelo físico britânico Peter Higgs, talvez ele continuasse como ateu.
ResponderExcluirEle foi meu professor de francês em Poções, no inicio da década de 60. Realmente, ele era um dos mais bem preparados professores do ginásio. Lembro-me quando ele me repreendeu porque eu estava fumando e descreveu os malefícios do tabagismo. Eu era muito jovem, devia ter ~11 anos.
Graças ao seu blog que publicou a bela crônica sobre o Affonso, feita por Eduardo Sarno, foi quando me lembrei muito vagamente dele. Meu tio Zóstenes era vizinho dos pais do Eduardo e eu sempre ia muito à casa do meu tio, e em algumas ocasiões eu via o Eduardo vestido a caráter como seminarista. Parabéns.
Salvador A. Vaz
Lembro bem de Seu Zóstenes, como o chamávamos, e de seus sobrinhos...e principalmente de suas sobrinhas ! Eu ainda era seminarista e marquei encontro com uma delas no cinema. Eraldo Curvelo percebeu e jogou areia na brincadeira ! Ele era vizinho , moravam na casa que havia sido de Leto e Dalva. Mas daquela casa quis o destino que saisse Vane, a minha esposa.
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