Por Eduardo Sarno
Eles estavam nas ruas e nas nossas cabeças. Quando ouvíamos a molecada gritar: “Ôôô Três Casaco !!!” corríamos para ver. Lá estava ele, barbudo, já de uma certa idade, carregando um saco cheio de coisas, correndo atrás dos moleques e jogando pedras. Ele costumava ficar na porta da casa do dr. Agripino Borges e chegou a dar um tapa em Adilson Santos. Era dos brabos. Mas tinha também os mansos: Isaulino era um deles. Magro, segurando as calças sujas para não cair, andava, ciscava com uma perna, catava um bago de cigarro no chão, dava uma corridinha, parava e ficava falando só. Quando o chamavam, resmungava e mal levantava a cabeça.
Para nós, atentar os doidos era um misto de brincadeira ingrata e perigosa. Não nos deixava satisfeitos. Havia ali algo que nosso entendimento infantil não alcançava. O máximo que ouvíamos os adultos comentarem eram sentimentos de pena: “coitados !!!”. Mas isso não era suficiente. Ficávamos a pensar de onde eles vinham, porque se tornaram assim e o que eram, finalmente. Às vezes alguém comentava que um doido havia sido um homem rico, fazendeiro ou negociante, ou que uma doida teria sido uma mulher muito bonita, que esteve quase noiva. Sentíamos o peso da fatalidade como o de uma rocha caindo em cima de uma formiga, pois ali estava o pobre coitado, na rua, sem absolutamente nada. O contraste conosco era total. Tínhamos de tudo e a comparação a que éramos submetidos quando víamos um doido era muito forte.
Joaninha, a empregada lá de casa, assim certamente como todas as outras de Poções, não perdia a oportunidade de recorrer às ameaças de chamar um doido para nos pegar em caso de desobediência ou malcriação. Os preferidos eram Buqueirão, um mulato barbudo, maltrapilho, feroz e que jogava pedra, e o outro era Medonho, olhos remelentos e uma cabeça enorme, que ele batia contra a parede.
A nossa ignorância fazia com que ficássemos aterrorizados, imaginando a obediência daqueles doidos aos desejos das empregadas, a vinda deles fisicamente durante o dia e metafisicamente durante o sono, nos atormentando.
Mas, com alguns doidos havia uma certa convivência ou aproximação. Lope, por exemplo, doido manso, contava as estrelas e quando errava recomeçava. Ao nos ver pedia “torresmim” para comer. Maria Putuquinha tinha até um trabalho, botava água de ganho nas casas, pois não existia ainda a água encanada de Morrinhos. Já com o Carrim, que era cego, a malvadeza da molecada era orientar erradamente e fazer ele tropeçar ou cair em um buraco. Quando davam comida para ele e não tinha carne, perguntava: “-Ô Sá Jô cadê a mastigadura ?” Quando a molecada deu um pau sujo de bosta para ele pegar acusou logo: tem um cagado por aqui !.
Os doidos tinham oscilações de humor e comportamento, e dizia-se que a lua cheia tinha a ver com isso. Gatinha era pequena, branquela, e quando braba deu um murro na barriga de Vone Macedo, que estava na porta da farmácia de Olimpio Rolim. Contudo, os filhos de comadre Dozinha Fagundes podiam xingar de Gatinha que ele não se incomodava. Pedia pedaços de sabão nas casas e suspendia a saia, para alegria da molecada.
Já Pêga, negra gorda, feia e suja, era sempre braba. O povo raspava a cabeça dela por causa dos piolhos.
Havia os que, se não eram doidos eram tipos estranhos. Zupero era um deles. Índio, caboclo das matas, onde morava, não saia de dia e só a noitinha é que passava nas casas. Lenço amarrado na cabeça, bermuda desfiada, brincos e colares Zupero trazia para a nossa curiosidade um novo elemento: o efeminado. Cantava versos do terno de Reis: “Ai duri duri ai, ai ai duri duri ai”, e dizia que na Sexta Feira Santa passava por dentro de um espelho.
O outro tipo estranho era Mazinho, filho de Dona Massú, que era lavadeira e fazia acarajé. O pai era seu Hermenegildo, guarda noturno, que o povo chamava de “Miligildo” e tinha um Reis de Boi onde, certa ocasião, pregou um rabo de verdade no “boi” que fedeu tanto que o povo não quis receber o Reis nas casas. Negro, alto, de andar rebolado, Mazinho era o outro efeminado que nos intrigava. Não sabíamos nem porque nem para que servia um efeminado. Achávamos que era só mania de querer imitar as mulheres.
Poções sempre foi pequeno e com três passadas os doidos iam da Rua da Itália à Rua São José e assim conheciam e eram conhecidos de toda a cidade que, tirante a molecada, não os hostilizava. Mas tinha um que só fazia ponto na Praça Coronel Magalhães. Era Jipe. Na verdade era um andarilho que saia de Jequié e ia até Conquista, pela Rio- Bahia, sem asfalto na época. Trazia pendurado no pescoço um volante e a tiracolo as buzinas e os faróis. Amarrado atrás um bagageiro pequeno, com os pertences de viagem. Os sapatos eram os pneus e as pessoas que o cercavam para ver a novidade davam dinheiro, que era para comprar a “gasolina”: café com leite e pão no Bar do João Liguori.
São lembranças de seres provisórios, sem passado e sem futuro, que só serviram para povoar a nossa imaginação. Eles ficaram no passado, mas nós mantemos incrustados em algum lugar das nossas mentes aqueles olhares perdidos que olhavam mas não viam , os olhares dos doidos de Poções.
Jul/97
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