Restou saber em qual Poções eles viveram. Se as suas histórias não foram compreendidas, eles passaram a fazer parte da história da cidade, naturalmente.
Quem vai dizer que existia maldade em Isaulino? Usava uma calça sem cinto, apenas duas reatas amarradas com um barbante e, muitas vezes, suja de fezes. Descalço, pés rachados, camisa toda rasgada. Uma mão segurava a calça e a outra carregava o saco cheio de latas, puxando um dos pés para trás. O caneco era para pedir água ou café. Possuía olhos claros, falava pouco e baixo. Gesticulava na maioria das vezes como a pedir dinheiro e comida.
Menos maldade havia em Cumpadinho. Sol a pino, vestia um casaco de frio. Vivia sentado na calçada defronte a casa de Fernandão, esperando por um prato de comida que era dado por Dona Marianina ou por tia Stela. Cabelos brancos penteados, ele desaparecia nos finais de tarde.
De uma agressividade aparente, com um porrete na mão, Paulina usava para se defender de possíveis brincadeiras de quem ela atacava com seus discursos. Também carregava um saco e nele a sua vida. Falava sem parar, cabelo envolto em um velho lenço furado. Diziam que Paulina era uma pessoa normal e que depois ficou doida, de repente. Foi inspiração para um poema de José Onildo que se chama “A noiva da cidade”. Nunca consegui lembrar se Paulina era a mascate que comprava mercadorias em São Paulo para revender de porta em porta – tenho dúvida.
Se havia uma doida simpática ela se chamava Josina. Muitas vezes acompanhei suas conversas com a minha irmã Elisa. As duas tinham uma admiração especial e pegava carona nas histórias. Sofria de uma grande depressão pela perda do marido. Transferiu toda carga emocional para o filho Nuguinha.
Outro dia, em Morrinhos, encontrei com Ivan, que também era chamado de doido. De doido não tem nada. Talvez seja quem acha que ele não gira bem. Passou anos trabalhando em São Paulo. Tremenda lucidez, queimado pelo sol, diz que ganha a vida catando ferro velho. Na verdade, tem sua rocinha de feijão.
Sentado na porta do bar de Duca e todo maltrapilho, a gente encontrava Dió. Madrugada, quando o ônibus ainda entrava na cidade, era a única alma viva sob aquele frio de rachar. Caolho, diziam que era a marca de valentia. Defendeu-se de uma invasão na sua fazenda e levou um tiro no olho. Pouca conversa, adorava receber um cigarro e carregava uma lata para tomar café. Durante o dia ele sumia.
Quem dissesse “pára João” ao varredor de ruas mais simpático que Poções já teve, ia ver inerte a figura de João. E João só continuava a varrer se ouvisse o comando “varre João”. Se estivesse empurrando o carrinho de mão, acontecia a mesma coisa – ficava inerte com o carrinho no ar até que alguém dissesse o novo comando.
Maldade em João? Não, maldade nossa.
Toda quinta feira era o dia oficial da esmola, uma convenção que se perdeu no tempo. Lá na loja, na gaveta do dinheiro, já estavam separadas as notas e as moedas para as esmolas. Madalena era uma pedinte que andava descalça e apenas levantava a mão, sem dizer uma só palavra. O gesto era tradicional e só baixava o braço depois que recebesse a sua parte.
De nome exótico, aparência jovem, sempre penteado a moda Elvis, Véi de Zé Galo era o galã (nada a ver com o galo). A fama de tarado ficou e toda mulher tinha medo de encontrar com Véi na rua, principalmente no Beco dos Artistas. Contam da sua relação com um jumento e que fora “abotoado”. Ao passar pela Cônego Pithon, gritou socorro a Liligo Moraes e foi instruído de como se libertar. Seu concorrente de fama de tarado era Tonico. Esse aí, subia e descia a Rua da Itália umas trinta vezes por noite. A fama e a ameaça eram folclóricas, pois nunca se soube de registro oficial de algum “fato consumado”.
O certo é que os Isaulinos, Cumpadinhos, Paulinas, Josinas, Ivans, Diós, Madalenas, Véis de Zé Galo e Tonicos da vida vão continuar a viver marginalizados pelo mundo afora, sem a oportunidade de amenizarem a dor, recuperarem a auto-estima e transformar os sentimentos em esperança.
Assim é a humanidade.
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Você me fez lembrar minha infância, quando aparecia no sitio, uma vez no ano, uma figura chamada "Paulo Zoinho". Aos farrapos, cheio de bicheira, meus tios pegavam ele - "na marra" - davam um banho geral, debaixo de muito xingamento do "doido". Depois, minha tia tratava as bicheiras com "criolina" (inimaginável nos dias de hoje) e o vestia dignamente. Após alguns dias, pousado num caramanchão no sitio, alimentado e sarado das feridas, Paulo Zoinho sumia sem deixar vestígios. 1 abraço. SQ
ResponderExcluirLu, tinha Paulina, a poetisa, era de Minas Gerais e publicou livros. Ainda tem descendentes em Conquista. Ela era uma espécie de mascate, vendia roupas usadas, um brechó ambulante. Pode ter havido outra Paulina mais deserdada e mentalmente comprometida.
ResponderExcluirGrande abraço, continue suas excelentes cronicas...agora ilustradas !!
Eduardo Sarno
www.familiasarno.blogspot.com/