"Se chorei ou se sorri, o importante é que em Poções eu vivi"

terça-feira, 13 de junho de 2017

Caminhos musicais

Por Roberto Fagundes Prudente (*)

Há quase cinquenta anos atrás, os caminhos musicais de nossa terra mudariam para sempre. Celeiro de grandes músicos, naquela época imperava a Filarmônica de Poções, também chamada de “A Furiosa”, competentemente comandada pelo Maestro Bernardino Fagundes (tio Nadinho) e composta de grandes músicos: Arnaldo Fagundes, Antônio Fagundes, Alcides Bordado, Quito, entre outros tantos. Essa orquestra, aliada a outros músicos boêmios, como Deusdete Fagundes, Pedro França etc., fazia das calçadas de nossa infância verdadeiras noites de serestas. E como era gostoso viver cada um daqueles momentos!

Mas o mundo estava mudando e uma nova geração musical surgia. O “trio ASA”, composto por Antônio Fagundes (Tonhe Banana), Sandoval Lago França (Gazo) e Albérico Fagundes de Sá (Berecó), já dava os primeiros passos para essa mudança no horizonte poçoense. Mais tarde, transformado no “quarteto JASA”, com a inclusão de Jeová Fagundes Prudente (Géo), praticamente, ou especificamente, na sala da casa de Alcides da Silva Fagundes (vovô Cide) e Alzira Lago Fagundes (vovó Dila), iniciava a gestação de “Os Fantasmas”. Sem muitos recursos, o grupo ensaiava com violões e uma bateria improvisada, composta de dois carotes (barris de madeira usados para carregar água em lombo de jegue, do chafariz para casa), um grande e um pequeno, com a tampa da face superior substituída por couro, e um prato cedido pela “Furiosa”. Assim os primeiros acordes começavam a ser ouvidos na Rua Benjamim Constant.

Aí veio a primeira apresentação em público. Festa marcada para um sábado à noite, de umas férias de Natal em 1966 (não recordo exatamente a data). Com violões eletrificados artesanalmente e amplificadores montados sobre plataformas de velhos rádios valvulados (obra fantástica de Rone, meu irmão mais velho, e de Tonhe Banana, mestres na eletrônica já naquela época). E a bateria... E a bateria? Como tocar numa festa com uma bateria feita de carotes? Foi aí que meu pai, Roberto de Souza Prudente, já totalmente envolvido com a história, resolveu alugar, em Conquista, uma bateria para o evento, só que, por exigência do locador, o baterista teria que vir junto (era o quinto Fantasma, rsrsrsrs). E assim Jeová entrou como vocalista e o grupo estava pronto para o grande show. 
Local: Clube da Sociedade União das Classes (vulgo “Mela Cueca”), clube construído pelas famílias de Poções através da Sociedade União das Classes, na gestão de meu avô, Alcides Fagundes, como presidente.

Apresentador: Pietro Sangiovanni, o Pepone (nem sei se ele se lembra disso). A emoção era tanta que o apresentador trocou até o nome do conjunto, anunciando “Os Fagundes” ao invés de “Os Fantasmas”.

Abertura do show: “Prá me conquistar” – Renato e seus Blue Caps.
Esse show marcou realmente uma nova era musical em Poções e o conjunto “Os Fantasmas” inspirou tantas gerações, e tantos músicos começaram a despontar a partir deles (inclusive eu), que, hoje, Poções faz parte do circuito do rock brasileiro, com grande participação de bandas locais.
É com muito orgulho que voltamos em 2015, quase cinquenta anos depois, para tocar neste mesmo espaço, numa mesma tarde de “Chá Dançante”, como tantos que aconteceram aqui e relembrar as músicas que embalaram os “anos dourados” de nossa juventude. Impossível não ficar emocionado e, como bem diz Lulu: “O importante é que em Poções eu vivi!”

(*) Roberto Fagundes Prudente é engenheiro e músico da Banda Pop78.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Educação à italiana

Dia das mães passado, fiquei pensando em Anna Maria, a minha mãe. Lembranças saudosas e alegres do tempo em que eu ainda era estudante de escola primária.
                           Anna Maria Caputo Sangiovanni
Uma italiana com o estudo incompleto, mas que se esforçara para aprender o português. Falava com o sotaque carregado e os vícios do aprendizado, da convivência com parentes italianos e com os vizinhos de Poções. Uma nova língua, talvez. Usava o aumentativo das palavras com terminações que as confundiam se eram certas ou erradas. Por exemplo: a palavra fogão era pronunciada “fogone” no lugar de “fornello”.

Nesse embalo, eu aprendia um “italiano misturado” - o suficiente para entender os assuntos que os tios falavam durante as reuniões de família. Quando uma tia brasileira conversava com outra tia italiana, a conversa era em português. Quando o grupo era só de italianos, rolava o dialeto original de Mormanno. Os filhos e primos que circulavam entre os grupos podiam entender tranquilamente.

A vivência no núcleo familiar, no dia a dia, era sempre surpreendente. Falava-se com a conveniência do momento. Na presença de estranhos ou amigos, quando se fazia um comentário mais particular, era em italiano. Quando chegava aquela visita meio inesperada, alguém lembrava para que fosse colocada uma vassoura atrás da porta da despensa, de cabeça para baixo – uma simpatia para que a visita não demorasse muito. Se dizia em italiano: “Mete la scopa dietro a la porta”. E quando a visita insistia em permanecer, colocávamos um pano de prato enrolado nas palhas, já que as vassouras eram feitas com esse material. Mesmo quando a visita era o Padre Honorato, falávamos em italiano. Ele era surdo e poderia fazer leitura labial. As visitas do Padre eram sempre próximas ao meio dia e, nesse caso, a vassoura não funcionava. Restavam duas opções: ou convidá-lo para o almoço ou prometer entregar um prato de comida na sua casa.

Durante as refeições, geralmente sempre se falava em italiano quando era para contar algo. O português, a gente falava para pedir a garrafa d´água, o pão, um talher, etc. As refeições eram pontuais e a reclamação por atraso era em italiano.

Chegava a vez de minha mãe controlar os estudos. Ela não tinha experiência suficiente porque meus irmãos mais velhos trilharam caminhos que não necessitaram dos ensinamentos. Pepone estudou no Ginásio de Jequié desde os 10 anos de idade. Michele e Elisa estudaram em Poções – eram bons alunos e minha mãe conseguia controla-los pelas notas dos boletins. Eu sempre fui desatento para estudar e ela habituou-se em “tomar a lição”. Tinha que ler o texto completo, pois ela não dividia os assuntos e nem fazia perguntas. Era uma tarde inteira para aprender.

Se não tivesse aprendido, me devolvia o livro até que eu decorasse a lição. Levei sempre na “valsa” e quando não dava conta de concluir a tarefa, fazíamos um acordo para estudar nas primeiras horas de dia claro do dia seguinte. Como dormia no quarto do meio e só havia janela no quarto ao lado, passava um cordão sobre a porta do quarto de Elisa e assim que o despertador tocava, puxava a persiana da janela para deixar a luz entrar. Ficava deitado de lado e o livro aberto voltado para mim. Minha mãe levantava e ia ver se estava estudando. Nessa hora, o coração de mãe batia mais forte e ela perguntava: Tá estudando? Eu despertava do cochilo e apenas mostrava o sinal de positivo com o dedo. Ela não ia conferir.

Mas havia uma outra crença que fazia questão de recomendar. Pedia para que eu dormisse com o livro debaixo do travesseiro. Assim, dizia, a lição entraria mais fácil na cabeça.

Quando o motor da usina quebrava, restava estudar à luz de velas. Era hora de rezar o terço.

Não dava conta de entender algumas palavras pela rapidez que pronunciava. Ao rezar a Salve Rainha, as primeiras palavras eram: Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, Vida, doçura e esperança nossa... As palavras Vida, doçura, eu só conseguia entender como se fosse “Vida do Sul”.

No Pai Nosso, a frase que dizia “venha a nós ao vosso reino” só ouvia como se fosse “venha nós a vassourinha”  

Hoje, quando ouço a música “Salve o Divino, Espirito Santo, puro paráclito, consolador. Aceitai, as lindas rosas, tão preciosas do nosso amor” a lembrança da minha mãe é tão presente porque ela gostava de arrumar a casa cantando esta música. Vinha toda tranquila e quando entrava no quarto, parava de cantar, me sacudia e perguntava “perché non si sveglia?” (porque não acorda?). Ao cantar a música, ela não conseguia falar a palavra “aceitai”. No sotaque carregado, pronunciava: a-zz-eitai signor...

Enfim, a religião se fazia presente. Quando ela sentia que eu não estava preparado para uma prova, pedia ajuda aos santos. Recomendava que eu colocasse um “santinho” no bolso da farda. Enquanto isso, mantinha uma vela acesa junto às imagens dos santos. Quando o resultado da prova era bom, o santo havia ajudado. Quando era ruim, a culpa era só minha.

Oggi, mia cara Anna Maria, il mondo è molto cambiato.