A programação iniciava-se no domingo de ramos e terminava no domingo de páscoa. Na quarta feira, já havia atividades na igreja e, praticamente, a quinta era de concentração com a tradição do lava-pés, no final da tarde, que simbolicamente traduz humildade e purificação. Os 11 apóstolos estavam lá representados com as suas faixas coloridas, já que Judas não participava porque havia vendido a sua alma para Satanás.
Padre Honorato fazia uma confusão e não beijava os pés da gente. Jogava um pouco de água, encostava o rosto quase um palmo de distância e fazia menção de beijar o pé, apenas. Passava para o outro apóstolo e repetia o gesto até lavar os pés de todos nós. Uma vez, quem beijou o meu pé foi o Bispo Dom Climério Almeida de Andrade, da Diocese de Vitória da Conquista.
Os santos e quadros já estavam cobertos com panos roxo, símbolos de penitência, dor e tristeza. Na missa de quinta, retirava-se a toalha do altar, talvez para demonstrar despojamento – a gente (como fui coroinha) fazia aquilo de forma mecânica porque não se explicava a razão, era tradição e bastava.
Na sexta, desde cedo, as rádios não apresentavam os programas normais e líderes de audiência. Era dia de folga para Aroldo de Andrade, na Rádio Globo, e para o Big-Ben, na Rádio Mundial. A programação era somente de músicas clássicas.
Havia pessoas que entravam em jejum completo. Invés, eu acordava cedo, tomava um café com pão e “jejuava” até meio-dia, bem na hora que começavam a chegar os vatapás e carurus diversos, já que lá em casa, por ser de tradição italiana, minha mãe nunca teve habilidade para fazer comida baiana. As vizinhas Zilda, tia Stela, Tidinha, tia Railda, Ziza, Dona Araci e Noélia (e outras que não me lembro agora) mandavam os pratos com as suas especialidades. Era uma festa poder provar tantas variedades.
- Dia de jejum, imagine! Como consciência e barriga cheia ninguém vê, ficava mais tranquilo para a gente comer tanto.
A tarde e noite de sexta ainda haviam atividades. Íamos para a procissão do Senhor Morto. Era bonita a apresentação de Margarida Nunes, representando a Madalena, descerrando a imagem de Cristo coroado com os espinhos. Ainda mais bonita, a manifestação de fé do Sr. Brasilino Neto, seu pai, levando o banquinho para que sua filha pudesse ganhar altura e todos ouvirem o seu canto, em latim, nas diversas estações da via Sacra.
No final da tarde, eu confesso que ficava tomado pela reflexão sobre a morte e o sentimento de culpa por alguém ter morrido por você. Enfim, eram as crenças trazidas pelo som da matraca.
Terminada a procissão, começava a cerimônia do beija-pé. O Senhor Morto era enrolado em um lençol e colocado dentro de uma caixa enorme revestida de pano roxo, com uma grande cruz onde a letra M era feita por outro lençol. A cerimônia era extremamente organizada, com a iluminação reduzida, as pessoas em fila e em silêncio, se dirigindo para a imagem a fim de beijar o pé.
Pra mim, a grandiosidade do ato também era demonstrada na imagem, onde o dedão já não existia mais devido ao buraco formado pela umidade dos lábios das pessoas.
O sentimento de dor no dia da matraca só seria amenizado no dia seguinte, sábado de aleluia, quando o sol briga com a lua, refletidos numa bacia esmaltada e cheia de água.
Nota do blog
MATRACA - Instrumento formado de tábuas ou argolas móveis que se agitam para fazer barulho e se usam em vez da campainha nas festas da Semana Santa (Dicionário Michaelis).
.
Lulu, o seu relato, como sempre, está perfeito.
ResponderExcluirLembro-me com clareza daquela época, onde havia um ritual sacro e ordenado para que todos os Cristãos pudessem refletir o martírio que Jesus Cristo passou.
A utilização da Matraca, em parte, se dava em frente a nossa casa e eu tinha o dever de participar de todo o Rito, pois assim como vc eu, também, era coroinha.
Hoje, Lulu as coisas mudaram muito, não se respeita mais a Sexta Feira Santa. Aqui em Guarapari foi a maior bagunça muito som alto, muita bebedeira e até show do Vitor e Leo.
Tem-se a impressão de que as pessoas perderam o respeito com a Semana Santa. Elas,apenas, se beneficiam do feriado Religioso para blasfemar a ocasião.
Eu não vi a matraca(a não ser em filmes ou na literatura), mas lembro muito claramente que na minha infância a sexta-feira santa era, de fato, santa. Não varria a casa, não ligava o som, não abria a venda... Palvrão? Nem pensar! O melhor de tudo era esperar o sábado de aleluia para dar cascudo nos amigos, já que não sexta era pecado dar sequer um tapinha em alguém. Não sou religiosa, mas gostava da seriedade com que se vivia a Páscoa. Hoje é apenas um feriadão para a grande maioria das pessoas.
ResponderExcluirPorra bicho. Será que foi daí que saiu a expressão "parece uma matraca falando".
ResponderExcluirRealmente as coisas mudaram, tanto que, na sexta feira santa, quando vi estava comendo carne. Em outros tempos eu não conseguiria me penitenciar. O respeito era tão grande, que até "carne humna"era proibido. No sabado abriamos o balaio.
A matraca deu origem a expressão: Conversa igual uma matraca.
ResponderExcluir