Resultado – vim depois a saber – da tradição italiana de que os filhos sejam batizados com nomes de antenatos da família, respeitando certa hierarquia.
Funciona assim:
O primeiro filho homem leva o nome do avô paterno – daí ter-se chamado “Pietro” o irmão mais velho de meu pai, primogênito da família.
Nascendo um segundo menino, levará o nome do avô materno – chamou-se então “Michele” o segundo filho, irmão do meio de meu pai.
Um terceiro menino que chegue levará o nome do tio mais velho, irmão mais velho do pai (que terá sido batizado, por sua vez, com o mesmo nome de seu bisavô) – de modo que meu pai foi batizado “Luiz”, homenagem aportuguesada, tendo ele nascido já no Brasil, ao tio “Luigi”.
E assim por diante.
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Culpa da tradição, quantas saias justas já não enfrentou meu tio por chamar-se Michele. Tivesse, como meu pai, nascido no Brasil, teriam-lhe talvez batizado “Miguel” – a forma do nome em português – e tudo teria sido evitado. Mas não. De maneira que nem os cento e tantos quilos de estofo do corpanzil gigantesco, nem a barba espessa estilo Papai Noel, tampouco a lapa de chinelos tamanho 44 (45? 46?) bastam para evitar rocambolescas situações em que lhe fazem passar por mulher.A última ele contou outro dia. Sentado na sala de espera de uma clínica, aguardava ser convocado pela recepcionista para uma consulta médica, quando um cidadão achou de puxar conversa. O homem, troglodita, derramou-se em homofobia e, sem que se lhe fosse perguntado, danou a bradar que um dia ainda matava tudo quanto era bicha existente na cidade. Porque para ele homem é homem, e tal e tal, e não sei lá mais o quê. Violento mesmo, o cabra.
Tipo calado, meu tio preferiu não lhe dar trela. Seguiram-se uns minutos, e a mocinha gritou estridente o próximo nome da lista de espera: “Senhora Michele.” Ninguém respondeu. “Senhora Michele!” Nem piu. Mais uma vez – nada.
Meu tio temeu: “E deixar esse doido pensando que eu, um homem deste tamanho, tenho nome de mulher? Vou nada!” Pois calado estava, calado permaneceu.
Deu mais dois minutos e, como a recepcionista já se desse por satisfeita com a ausência de Dona Michele, levantou-se meu tio, caminhou até o balcão e cochichou no ouvido da moça: “Dona Michele não veio. Mas se você der uma engrossadinha na voz e chamar “Senhor Miquéle”, eu respondo. Pois esse Michele Sangiovanni aí na lista sou eu.”
Assim foi feito; e passou-se à consulta.
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Meu tio não bateu boca com o sujeito; talvez devesse. Teria ajudado a demolir um tanto mais certo tradicional mau hábito, que grassa entre os heterossexuais, de não defender publicamente os direitos dos homossexuais; de não demonstrar repúdio à intolerância, sob risco de ser tachado de viado ou mesmo discriminado como simpatizante; de, a rigor, não enfrentar de verdade o preconceito interno, impregnado em cada qual de nós formados no interior de uma cultura machista ao extremo. É certo que com alguns valentões, por segurança até, convém não comprar briga em qualquer sala de espera; mas, sempre e pelos meios possíveis, é bem que marquemos posições em favor de um mundo mais afeito ao convívio, à tolerância, à democracia de fato.Afinal, se por um lado crescemos impregnados de “tradição” desde pequenos – desde, às vezes, o próprio nome que nos é dado – , por outro, se tal tradição nos compele a alguma coisa nessa vida, é precisamente a dialogar com ela própria. Diálogo que, se franco, será certamente transformador – primeiro de indivíduos isolados, mas logo dos valores de que se constitui a própria tradição.
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Em tempo, outra anedota de meu tio Michele – outra de médico. Fez outro dia um exame, ultrassonografia ali das partes baixas. Alguém na clínica pôs assim na ficha: “Nome: Michele Sangiovanni; Sexo: Feminino”.
Diagnóstico: cisto no ovário.
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