Por Ricardo Sangiovanni -
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Impressionou-me há uns anos, quando conheci Mormanno,
paese do sul da Itália de onde emigraram meus avós paternos para o Brasil nos anos 50, a enorme quantidade de homônimos entalhados nas lápides do cemitério municipal.
Resultado – vim depois a saber – da tradição italiana de que os filhos sejam batizados com nomes de antenatos da família, respeitando certa hierarquia.
Funciona assim:
O primeiro filho homem leva o nome do avô paterno – daí ter-se chamado “Pietro” o irmão mais velho de meu pai, primogênito da família.
Nascendo um segundo menino, levará o nome do avô materno – chamou-se então “Michele” o segundo filho, irmão do meio de meu pai.
Um terceiro menino que chegue levará o nome do tio mais velho, irmão mais velho do pai (que terá sido batizado, por sua vez, com o mesmo nome de seu bisavô) – de modo que meu pai foi batizado “Luiz”, homenagem aportuguesada, tendo ele nascido já no Brasil, ao tio “Luigi”.
E assim por diante.
***
Culpa da tradição, quantas saias justas já não enfrentou meu tio por chamar-se Michele. Tivesse, como meu pai, nascido no Brasil, teriam-lhe talvez batizado “Miguel” – a forma do nome em português – e tudo teria sido evitado. Mas não. De maneira que nem os cento e tantos quilos de estofo do corpanzil gigantesco, nem a barba espessa estilo Papai Noel, tampouco a lapa de chinelos tamanho 44 (45? 46?) bastam para evitar rocambolescas situações em que lhe fazem passar por mulher.
A última ele contou outro dia. Sentado na sala de espera de uma clínica, aguardava ser convocado pela recepcionista para uma consulta médica, quando um cidadão achou de puxar conversa. O homem, troglodita, derramou-se em homofobia e, sem que se lhe fosse perguntado, danou a bradar que um dia ainda matava tudo quanto era bicha existente na cidade. Porque para ele homem é homem, e tal e tal, e não sei lá mais o quê. Violento mesmo, o cabra.
Tipo calado, meu tio preferiu não lhe dar trela. Seguiram-se uns minutos, e a mocinha gritou estridente o próximo nome da lista de espera: “Senhora Michele.” Ninguém respondeu. “Senhora Michele!” Nem piu. Mais uma vez – nada.
Meu tio temeu: “E deixar esse doido pensando que eu, um homem deste tamanho, tenho nome de mulher? Vou nada!” Pois calado estava, calado permaneceu.
Deu mais dois minutos e, como a recepcionista já se desse por satisfeita com a ausência de Dona Michele, levantou-se meu tio, caminhou até o balcão e cochichou no ouvido da moça: “Dona Michele não veio. Mas se você der uma engrossadinha na voz e chamar “Senhor
Miquéle”, eu respondo. Pois esse Michele Sangiovanni aí na lista sou eu.”
Assim foi feito; e passou-se à consulta.
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Meu tio não bateu boca com o sujeito; talvez devesse. Teria ajudado a demolir um tanto mais certo tradicional mau hábito, que grassa entre os heterossexuais, de não defender publicamente os direitos dos homossexuais; de não demonstrar repúdio à intolerância, sob risco de ser tachado de viado ou mesmo discriminado como simpatizante; de, a rigor, não enfrentar de verdade o preconceito interno, impregnado em cada qual de nós formados no interior de uma cultura machista ao extremo. É certo que com alguns valentões, por segurança até, convém não comprar briga em qualquer sala de espera; mas, sempre e pelos meios possíveis, é bem que marquemos posições em favor de um mundo mais afeito ao convívio, à tolerância, à democracia de fato.
Afinal, se por um lado crescemos impregnados de “tradição” desde pequenos – desde, às vezes, o próprio nome que nos é dado – , por outro, se tal tradição nos compele a alguma coisa nessa vida, é precisamente a dialogar com ela própria. Diálogo que, se franco, será certamente transformador – primeiro de indivíduos isolados, mas logo dos valores de que se constitui a própria tradição.
***
Em tempo, outra anedota de meu tio Michele – outra de médico. Fez outro dia um exame, ultrassonografia ali das partes baixas. Alguém na clínica pôs assim na ficha:
“Nome: Michele Sangiovanni; Sexo: Feminino”.
Diagnóstico: cisto no ovário.
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