Outro dia, viajando pela cidade de Senhor do Bonfim em companhia de alguns amigos de trabalho, um deles, Edson Cabeça, perguntou-me por Senhor Morto.
“Rapaz, você foi longe. Lembrar de Senhor Morto só estando em Senhor do Bonfim”, respondi.
Os outros amigos ficaram curiosos com a pergunta e expliquei que, durante uma viagem a Juazeiro, dividi o apartamento do Grande Hotel de Juazeiro com um amigo que tinha o costume de dormir de barriga para cima, enrolado no lençol. Despertei mais cedo e me assustei com a imagem do cara – queixo avantajado com barbicha e a forma do lençol, exatamente como se fazia com a imagem do Cristo na sexta feira santa, aí em Poções. Por azar [dele], contei a história para um amigo que, imediatamente, tratou de colocar o apelido de “Senhor Morto”.
Me lembrei dessa imagem e de outras passagens religiosas do tempo em que fui coroinha junto com Tonhe Gordo.
Na época, um acontecimento trouxe nova energia para os religiosos da cidade - a chegada de um grupo de freiras A comunidade havia se preparado para recebe-las. A casa ao lado da sede do Tiro de Guerra foi cedida para ser a morada desse grupo, comandado pela irmã Bernadete. Enquanto a casa não ficava pronta, as doações do mobiliário eram guardadas em um quarto da nossa casa, frutos da mobilização da população. Elas fizeram um importante trabalho de base e comunitário. O local de morada foi batizado como “Casa das Freiras”.
Na missa, os grupos dividiam-se e eram identificados pelas fitas usadas no pescoço. Os Congregados Marianos usavam fitas de cor azul. As vermelhas eram do pessoal do Sagrado Coração de Jesus. As amarelas da OVS (Obra das Vocações Sociais).
A semana santa sempre foi comemorada com o rigor de todos os ritos. O lava-pés era na quinta feira com a participação de 12 apóstolos (eu era um deles), imitando o ato de Jesus na véspera da morte. Muitas vezes, a cerimônia foi conduzida pelo bispo Dom Climério. Entre nós, apóstolos, cabia a preocupação de saber qual era a cor da faixa que Judas vestiu. Para evitar controvérsias, nenhum sacristão sabia ao certo, portanto, ninguém queria ser o traidor.
Na sexta, a matraca dava o toque de tristeza e de compaixão. Era a hora de embrulhar a imagem do Senhor Morto com o lençol (o Santo Sudário), e iniciar a procissão. Uma das imagens que guardo como se fosse hoje é a de Margarida, filha de Brasilino Neto, que se vestia de Verônica. Nas estações, cantava e desenrolava a imagem do Cristo com a coroa de espinhos. Orgulhoso e com a religiosidade batendo no peito, Brasilino acompanhava Margarida e ainda carregava um banquinho, usado para dar maior alcance a sua filha.
No final, o andor era deixado sobre uma base de madeira existente na igreja, e na cruz pendurávamos um pano em forma de M. Iniciava-se, então, a cerimônia do beija-pé. O povo participava deste ato tão intensamente que havia filas e o dedão do pé da imagem, de tanto ser beijado, havia dissolvido ao longo dos anos e se transformado em um buraco.
Não somente os católicos possuíam essa religiosidade. Na Igreja da Praça da Bandeira, os protestantes participavam das suas manifestações em grande número e a igreja vivia lotada. Lá, o auge era na noite do batismo. Debruçava-me na balaustrada da praça para assistir a chamada daqueles que seriam batizados em um ritual tão ao estilo de São João Batista, que permitia os comentários e a comparação do cenário de uma enorme fonte com a pequena pia batismal da igreja católica. Os crentes, como eram chamados, sempre se vestiram a caráter, com paletó e gravata.
Muitas vezes, eu ficava sentado na varanda de casa ouvindo o radinho de pilha, achando interessante o sobe e desce na rua da Itália. Os crentes subiam pelo lado direito e os católicos desciam pelo lado esquerdo.
Na verdade, existia o Padre Honorato de um lado e o Pastor Isaías do outro. Cada um tinha o seu rebanho. Toleravam-se, mas os alto-falantes eram apontados para cada uma das igrejas.
Também, nem todos eram fiéis. Havia a minoria que preferia acreditar na presença de mitos do folclore brasileiro. Numa bela tarde, estávamos sentados no passeio ao lado da sacristia da igrejinha e ficamos sabendo que um romãozinho estava aparecendo na rua do Tigre. A gente sabia que o romãozinho era um amaldiçoado, que tinha uma índole ruim, parecia um saci e se manifestava jogando pedras nos telhados. Fomos para lá, éramos uns 10. Entramos na casa e ficamos esperando a manifestação. As pedras vieram. Resolvemos dividir a turma – metade dentro e a outra metade fora da casa. Não deu outra, as pedras vinham da direção do vizinho. Descobrimos que eram dois adolescentes que escutaram a história da maldição do romãozinho e assustavam as pessoas. Nossa turma ficou conhecida como os “destruidores de romãozinhos”.
Enquanto fui coroinha, segurei a bandeja (aquela que é utilizada para aparar partículas de hóstias) e testemunhei a comunhão e a manifestação de fé de muitas pessoas. Hoje, quando participo da chegada da bandeira, continuo sendo testemunha da devoção desse nosso povo, dos olhos encharcados de lágrimas e da vontade de tocar e beijar a bandeira do Divino Espírito Santo.
Uma boa páscoa a todos.
“Rapaz, você foi longe. Lembrar de Senhor Morto só estando em Senhor do Bonfim”, respondi.
Os outros amigos ficaram curiosos com a pergunta e expliquei que, durante uma viagem a Juazeiro, dividi o apartamento do Grande Hotel de Juazeiro com um amigo que tinha o costume de dormir de barriga para cima, enrolado no lençol. Despertei mais cedo e me assustei com a imagem do cara – queixo avantajado com barbicha e a forma do lençol, exatamente como se fazia com a imagem do Cristo na sexta feira santa, aí em Poções. Por azar [dele], contei a história para um amigo que, imediatamente, tratou de colocar o apelido de “Senhor Morto”.
Me lembrei dessa imagem e de outras passagens religiosas do tempo em que fui coroinha junto com Tonhe Gordo.
Na época, um acontecimento trouxe nova energia para os religiosos da cidade - a chegada de um grupo de freiras A comunidade havia se preparado para recebe-las. A casa ao lado da sede do Tiro de Guerra foi cedida para ser a morada desse grupo, comandado pela irmã Bernadete. Enquanto a casa não ficava pronta, as doações do mobiliário eram guardadas em um quarto da nossa casa, frutos da mobilização da população. Elas fizeram um importante trabalho de base e comunitário. O local de morada foi batizado como “Casa das Freiras”.
Na missa, os grupos dividiam-se e eram identificados pelas fitas usadas no pescoço. Os Congregados Marianos usavam fitas de cor azul. As vermelhas eram do pessoal do Sagrado Coração de Jesus. As amarelas da OVS (Obra das Vocações Sociais).
A semana santa sempre foi comemorada com o rigor de todos os ritos. O lava-pés era na quinta feira com a participação de 12 apóstolos (eu era um deles), imitando o ato de Jesus na véspera da morte. Muitas vezes, a cerimônia foi conduzida pelo bispo Dom Climério. Entre nós, apóstolos, cabia a preocupação de saber qual era a cor da faixa que Judas vestiu. Para evitar controvérsias, nenhum sacristão sabia ao certo, portanto, ninguém queria ser o traidor.
Na sexta, a matraca dava o toque de tristeza e de compaixão. Era a hora de embrulhar a imagem do Senhor Morto com o lençol (o Santo Sudário), e iniciar a procissão. Uma das imagens que guardo como se fosse hoje é a de Margarida, filha de Brasilino Neto, que se vestia de Verônica. Nas estações, cantava e desenrolava a imagem do Cristo com a coroa de espinhos. Orgulhoso e com a religiosidade batendo no peito, Brasilino acompanhava Margarida e ainda carregava um banquinho, usado para dar maior alcance a sua filha.
No final, o andor era deixado sobre uma base de madeira existente na igreja, e na cruz pendurávamos um pano em forma de M. Iniciava-se, então, a cerimônia do beija-pé. O povo participava deste ato tão intensamente que havia filas e o dedão do pé da imagem, de tanto ser beijado, havia dissolvido ao longo dos anos e se transformado em um buraco.
Não somente os católicos possuíam essa religiosidade. Na Igreja da Praça da Bandeira, os protestantes participavam das suas manifestações em grande número e a igreja vivia lotada. Lá, o auge era na noite do batismo. Debruçava-me na balaustrada da praça para assistir a chamada daqueles que seriam batizados em um ritual tão ao estilo de São João Batista, que permitia os comentários e a comparação do cenário de uma enorme fonte com a pequena pia batismal da igreja católica. Os crentes, como eram chamados, sempre se vestiram a caráter, com paletó e gravata.
Muitas vezes, eu ficava sentado na varanda de casa ouvindo o radinho de pilha, achando interessante o sobe e desce na rua da Itália. Os crentes subiam pelo lado direito e os católicos desciam pelo lado esquerdo.
Na verdade, existia o Padre Honorato de um lado e o Pastor Isaías do outro. Cada um tinha o seu rebanho. Toleravam-se, mas os alto-falantes eram apontados para cada uma das igrejas.
Também, nem todos eram fiéis. Havia a minoria que preferia acreditar na presença de mitos do folclore brasileiro. Numa bela tarde, estávamos sentados no passeio ao lado da sacristia da igrejinha e ficamos sabendo que um romãozinho estava aparecendo na rua do Tigre. A gente sabia que o romãozinho era um amaldiçoado, que tinha uma índole ruim, parecia um saci e se manifestava jogando pedras nos telhados. Fomos para lá, éramos uns 10. Entramos na casa e ficamos esperando a manifestação. As pedras vieram. Resolvemos dividir a turma – metade dentro e a outra metade fora da casa. Não deu outra, as pedras vinham da direção do vizinho. Descobrimos que eram dois adolescentes que escutaram a história da maldição do romãozinho e assustavam as pessoas. Nossa turma ficou conhecida como os “destruidores de romãozinhos”.
Enquanto fui coroinha, segurei a bandeja (aquela que é utilizada para aparar partículas de hóstias) e testemunhei a comunhão e a manifestação de fé de muitas pessoas. Hoje, quando participo da chegada da bandeira, continuo sendo testemunha da devoção desse nosso povo, dos olhos encharcados de lágrimas e da vontade de tocar e beijar a bandeira do Divino Espírito Santo.
Uma boa páscoa a todos.
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