"Se chorei ou se sorri, o importante é que em Poções eu vivi"

domingo, 28 de dezembro de 2014

Paulo Espinheira

Por Eduardo Sarno, especialmente para o Blog
Paulo Espinheira (Foto: Mabel Oliveira)

Paulo não vai, ele fica na nossa memória. Todos juntos somos capazes de reconstruir a sua essência, a sua lembrança, o seu carinho para conosco.

Paulo tinha um grande depósito, um armazém, com portas largas, e na frente um enorme letreiro vermelho, escrito "Coração".

Era lá que ele guardava com carinho os amigos. Desde os amigos do pai, Dr. Ruy Espinheira, que ele manteve e cultivou, como os amigos do filho, ele mesmo, que durante sua vida ampliou e conservou. E, pasmem, guardava também, além dos amigos do pai, do filho, os amigos do Espírito Santo ! Estes eram os amigos de Poções, onde ele reencontrava na festa do padroeiro, Divino Espírito Santo.

Diferente de Glauber, Paulo tinha um copo na mão, um sorriso no rosto e muitas idéias na cabeça. Farrista, amistoso e culto. Era sempre um prazer para os amigos encontrá-lo nestes três momentos juntos.

Paulo Barão. Um merecido título de nobreza para quem enfrentou com tanta dignidade uma situação difícil, sem se abater, compartilhando com os amigos a mesma alegria de sempre.

O seu legado, para nós, não poderia deixar de ser o seu sorriso aberto, sempre franco e leal.

Adeus, primo, nós que ficamos te saudamos.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Os doidos

Por Eduardo Sarno
Eles estavam nas ruas e nas nossas cabeças. Quando ouvíamos a molecada gritar: “Ôôô Três Casaco !!!” corríamos para ver. Lá estava ele, barbudo, já de uma certa idade, carregando um saco cheio de coisas, correndo atrás dos moleques e jogando pedras. Ele costumava ficar na porta da casa do dr. Agripino Borges e chegou a dar um tapa em Adilson Santos. Era dos brabos. Mas tinha também os mansos: Isaulino era um deles. Magro, segurando as calças sujas para não cair, andava, ciscava com uma perna, catava um bago de cigarro no chão, dava uma corridinha, parava e ficava falando só. Quando o chamavam, resmungava e mal levantava a cabeça.

Para nós, atentar os doidos era um misto de brincadeira ingrata e perigosa. Não nos deixava satisfeitos. Havia ali algo que nosso entendimento infantil não alcançava. O máximo que ouvíamos os adultos comentarem eram sentimentos de pena: “coitados !!!”. Mas isso não era suficiente. Ficávamos a pensar de onde eles vinham, porque se tornaram assim e o que eram, finalmente. Às vezes alguém comentava que um doido havia sido um homem rico, fazendeiro ou negociante, ou que uma doida teria sido uma mulher muito bonita, que esteve quase noiva. Sentíamos o peso da fatalidade como o de uma rocha caindo em cima de uma formiga, pois ali estava o pobre coitado, na rua, sem absolutamente nada. O contraste conosco era total. Tínhamos de tudo e a comparação a que éramos submetidos quando víamos um doido era muito forte.

Joaninha, a empregada lá de casa, assim certamente como todas as outras de Poções, não perdia a oportunidade de recorrer às ameaças de chamar um doido para nos pegar em caso de desobediência ou malcriação. Os preferidos eram Buqueirão, um mulato barbudo, maltrapilho, feroz e que jogava pedra, e o outro era Medonho, olhos remelentos e uma cabeça enorme, que ele batia contra a parede.
A nossa ignorância fazia com que ficássemos aterrorizados, imaginando a obediência daqueles doidos aos desejos das empregadas, a vinda deles fisicamente durante o dia e metafisicamente durante o sono, nos atormentando.

Mas, com alguns doidos havia uma certa convivência ou aproximação. Lope, por exemplo, doido manso, contava as estrelas e quando errava recomeçava. Ao nos ver pedia “torresmim” para comer. Maria Putuquinha tinha até um trabalho, botava água de ganho nas casas, pois não existia ainda a água encanada de Morrinhos. Já com o Carrim, que era cego, a malvadeza da molecada era orientar erradamente e fazer ele tropeçar ou cair em um buraco. Quando davam comida para ele e não tinha carne, perguntava: “-Ô Sá Jô cadê a mastigadura ?” Quando a molecada deu um pau sujo de bosta para ele pegar acusou logo: tem um cagado por aqui !.
Os doidos tinham oscilações de humor e comportamento, e dizia-se que a lua cheia tinha a ver com isso. Gatinha era pequena, branquela, e quando braba deu um murro na barriga de Vone Macedo, que estava na porta da farmácia de Olimpio Rolim. Contudo, os filhos de comadre Dozinha Fagundes podiam xingar de Gatinha que ele não se incomodava. Pedia pedaços de sabão nas casas e suspendia a saia, para alegria da molecada.
Já Pêga, negra gorda, feia e suja, era sempre braba. O povo raspava a cabeça dela por causa dos piolhos.
Havia os que, se não eram doidos eram tipos estranhos. Zupero era um deles. Índio, caboclo das matas, onde morava, não saia de dia e só a noitinha é que passava nas casas. Lenço amarrado na cabeça, bermuda desfiada, brincos e colares Zupero trazia para a nossa curiosidade um novo elemento: o efeminado. Cantava versos do terno de Reis: “Ai duri duri ai, ai ai duri duri ai”, e dizia que na Sexta Feira Santa passava por dentro de um espelho.
O outro tipo estranho era Mazinho, filho de Dona Massú, que era lavadeira e fazia acarajé. O pai era seu Hermenegildo, guarda noturno, que o povo chamava de “Miligildo” e tinha um Reis de Boi onde, certa ocasião, pregou um rabo de verdade no “boi” que fedeu tanto que o povo não quis receber o Reis nas casas. Negro, alto, de andar rebolado, Mazinho era o outro efeminado que nos intrigava. Não sabíamos nem porque nem para que servia um efeminado. Achávamos que era só mania de querer imitar as mulheres.
Poções sempre foi pequeno e com três passadas os doidos iam da Rua da Itália à Rua São José e assim conheciam e eram conhecidos de toda a cidade que, tirante a molecada, não os hostilizava. Mas tinha um que só fazia ponto na Praça Coronel Magalhães. Era Jipe. Na verdade era um andarilho que saia de Jequié e ia até Conquista, pela Rio- Bahia, sem asfalto na época. Trazia pendurado no pescoço um volante e a tiracolo as buzinas e os faróis. Amarrado atrás um bagageiro pequeno, com os pertences de viagem. Os sapatos eram os pneus e as pessoas que o cercavam para ver a novidade davam dinheiro, que era para comprar a “gasolina”: café com leite e pão no Bar do João Liguori.
São lembranças de seres provisórios, sem passado e sem futuro, que só serviram para povoar a nossa imaginação. Eles ficaram no passado, mas nós mantemos incrustados em algum lugar das nossas mentes aqueles olhares perdidos que olhavam mas não viam , os olhares dos doidos de Poções.
Jul/97

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Irundy e o jogo de Xadrez

Com Irundy e Noélia - junho 2014
(Foto: Fernanda Sanjuan)
O dia 02 iniciou com uma triste notícia. Custava a acreditar que a notícia do falecimento de Irundy Manta Alves Dias era verdade, mesmo com a confirmação passada pelos meus amigos mais próximos.
A tristeza foi grande. Restava lembrar das histórias contadas pelo Seu Dy no blog dele. Lembrar das suas passagens no ginásio, na cadeira do consultório odontológico e na convivência do dia-a-dia como amigo nos diversos encontros em sequenciadas Festas do Divino, onde a presença era certa.
Além de professor de matemática, dentista, diretor, escrutinador, pai, marido, avô, cidadão presente, Irundy também ensinou o jogo de Xadrez nos intervalos pós provas no ginásio. Eu fui seu aluno, acompanhado de Fernando Schettini Filho (Coêlho), Tõe de Doca e Gracinha Almeida (irmã de Gessy).
Até hoje, quando olho a formação de um tabuleiro de Xadrez me lembro de Irundy. Cada peça tem uma função importante. O rei e a rainha, segundo ele, estavam protegidos pelo clero - os bispos. Eles podiam dar a proteção religiosa. Os cavalos serviam para que pudessem fugir do campo de batalha. As torres dariam a proteção de um castelo. A linha de peões era formada pelos soldados, os que protegiam as demais peças.
Não era uma aula, era uma batalha. A movimentação das peças, mostradas detalhadamente, acompanhadas de macetes de quais peças eram importantes a sua manutenção.
Fizemos um campeonato de Xadrez. Disputei com Gracinha, ganhei e fui enfrentar Fernandinho na final. Deu Fernandinho campeão. Meu primeiro título, portanto, Vice Campeão de Xadrez.
Histórias à parte, quero externar o meu sentimento pela perda irreparável de Irundy. Dizer a minha pró Noélia, aos filhos Sibele, Mercês, Dino e Guga, genros, noras e netos que sinto muito orgulho de ter convivido dessa forma com o Seu Dy. Um grande abraço a todos e resgatarei outras passagens.

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