"Se chorei ou se sorri, o importante é que em Poções eu vivi"

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Poções, não tão bem na terra como no céu... (Ficção)

Poções, mesmo nos dias de hoje, consegue me fascinar pelas lembranças dos momentos vividos em cada esquina, em cada rua e pela companhia dos velhos e inesquecíveis amigos. A saudade luta contra o progresso. O passado e o presente vivem num eterno embate.

Sempre será uma discussão de mesa de bar a evolução da Festa do Divino, as mudanças de hábitos e comportamentos do passado. Chico Picolé, rapidamente por telefone, me falou semana passada: - Não adianta pensar em fazer voltar o passado. Não temos mais como fazer, apenas lembrar e registrar.

Certamente, o que diz Chico é um grito perdido que ninguém mais ouve. É uma frase angustiante soando como uma guilhotina que cortou o seu passado. É tão angustiante quanto a cauda cortada da lagartixa, que vira para os dois lados, agoniza e não encontra mais o corpo para se reconstituir. Não me entrego!
Outro dia, no cemitério de Poções, enquanto visitava o túmulo de meu pai, dei uma volta e, ali, parecia que a cidade estava viva. Cada lápide que reconhecia tinha significado, tinha história, era a volta ao passado sem o medo de antes.

Lembrava-me do catecismo de Dona Fetinha, que dizia existir o lugar dos bons e o lugar dos maus - o céu e o inferno. O cemitério era o céu e, ao mesmo tempo, o inferno.

Em alguns túmulos, os meus ouvidos ainda escutavam o barulho dos punhados de terra jogados sobre os caixões de uma altura de pouco mais de sete palmos e, calmamente, também ecoavam as palavras de Alcides Batatinha na sua última homenagem ao morto. O cidadão estava partindo com a sua alma para o purgatório e ali selada a sua sentença - para o céu ou para o inferno?

À tardinha, na hora dos enterros, Poções tinha sempre umas nuvens vermelhas no horizonte. Era o céu ou inferno? Eu acho que era o céu. Nossa cidade era cheia de gente boa e ninguém investiria na construção do inferno. No máximo, podia ser o purgatório e a passagem direta para o céu, porque os ruins a gente perdoava aqui mesmo.

Paciência, o passado começa na porta do cemitério e termina lá dentro. Talvez, valesse a pena fazer um pavilhão na porta dele e a gente ficaria mais feliz na Festa do Divino. Teríamos a presença de todo mundo - os vivos e os mortos. Não teríamos o que reclamar - morrer, portanto, não seria tão ruim.

Ainda assim, se eu achasse a porta do céu, entraria lá para matar as saudades de uma Poções onde as coisas estão resolvidas, todos vivendo harmoniosamente onde o passado será sempre presente.

Mas, se a gente chega pela praça da Liberdade, a porta imaginária é ali, onde ainda enxergo os restos do obelisco. Em meio aos eucaliptos, no campinho, o baba de Bira Fernandes está rolando, enquanto na porta da prefeitura acontece a reunião dos velhos prefeitos: Olimpio Rolim, Otávio Curvêlo, Lulu Ramos, Anibal Carvalho, Dr. Aloísio Rocha e Tonhe Gordo, explicando como funciona a UPB. No outro lado da praça, uma conversa animada entre Argemiro Pinheiro, Chico Paradela e Pepeu. E lá vem Raimundo Paradela com um canário na gaiola para fazer “chama” no alçapão, bem no cruzeiro da Lapinha.

A camionete amarela de Luiz Sarno acabou de chegar da Fazenda Caetitú com um “panacum” de marmelos e vários latões de leite carregados por Erotildes. Veio, também, um feixe de copos de leite para ornamentar a igreja na missa de domingo. Marivaldo Soares na varanda, sem camisa, recebe seu Luiz, imitando a voz com um carregado sotaque italiano. Na casa ao lado, está Carlito Torres, ainda vestido de pijama de calças curtas.

Mais abaixo, seu Corinto Sarno voltando da caminhada de inspeção matinal das obras da igreja e do Hospital. Fernandão Schettini fuma um cigarro no maior papo com Vicente Paladino e Elier Barreto. Zóstenes Vaz, na balaustrada da varanda, apreciando o movimento da rua e ainda não tirou da garagem a pick-up Rural para ir à fazenda. Ed Porto Alves já se mudou para a casa que era de Valentim Sarno.

As fogueiras de São João foram queimadas no dia anterior e Humberto Schettini pergunta para Chico, meu pai, se vai repetir a dose. Dôca ainda comenta e vibra com o último filme que assistiu. Alcides Batatinha manda entregar a encomenda dos talões de notas. Dona Fetinha já está com a cruzadinha na porta, em fila, rumo à igreja.

Pelo menos, no céu, tem um botafoguense, Fernando (Bigode) Schettini vibrando que o Botafogo ganhou do Bangu de Ulisses do rádio. Vicente Ventura continua anunciando as notas fúnebres, calculando as probabilidades de o Vasco ser campeão. Muita gente vestindo as roupas confeccionadas por Otoniel Costa e Armando Jacó, com as famosas sandálias de pneus fabricadas por Zé Cambuí. Tenente Celino, delegado, mantendo a ordem na cidade, daquela delegacia do Beco Apertado.

Na antiga praça Deocleciano Teixeira (atual Raimundo Pereira Magalhães), o velho Roque está com a padaria aberta, mas ainda lê uma passagem da bíblia antes de começar a trabalhar. Miriam Fagundes, sentada ao caixa, com a registradora de manivela novinha em folha. Miguel Labanca sobe, vai em casa tomar um café. Zé Martins abre as portas da loja de ferragem de Américo Libonati. Licinho Fernandes já está vindo e fumando o seu Continental sem filtro para abrir a loja dos Sarno. Irineu já está com as portas de ferro da “Alvorada” suspensas enquanto Armando Rolim puxa os ferrolhos da farmácia. Jaimevique inaugurou o armarinho. Emério Pithon e Miranda recebem o novo carregamento de brinquedos do Bazar Natal. Emilio Sarno na porta do armazém com o paletó sobre os ombros. Dr. Ari Dias joga gamão com Ademar da Sucam. Abel Magalhães, de suspensórios, conversa animadamente com Daniel e Zezinho Alves, vizinhos de negócios. Mem Fernandes Santos (Vei Nenen), de camisa abotoada até o pescoço, conta mais um “causo” para Pasquale Paladino.

A essa hora, o Padre Honorato já se prepara para celebrar a missa em latim. Só Tonhe Gordo escutará o que ele vai dizer. Dona Anina Sarno, Marianina Schettini, Rosina Libonati, Francisca Sarno e as irmãs Elza e Odete Lago são as fiéis mais assíduas. Pelas lojas, Seu Liquinho Macêdo, tranquilamente, distribui aos assinantes o novo número do quinzenal “Folha do Povo”.

José Sobrinho passa com as malas de jóias defronte a marcenaria de Giovanni Sola. Fernando Ruggiero Schettini acabara de se mudar para a casa da antiga rua Apertada. Seu Jambrim Gusmão, com a nova camionete, vai tomar café com Dona Amélia, sua filha. Ubirajara Pombal, jornal na mão, caminha calmamente para abrir o Banco da Bahia. Seu Amaro Elon, do outro lado, abre as portas do Banco do Brasil. Djalma Barbosa passa com o caminhão carregado, iniciando nova viagem. Adelino limpa a camionete americana que ainda tem a gasolina original de fábrica. Vicente Orrico Sarno está prestes a partir para Morrinhos com a Rural e o reboque carregado.
Pedro da Barreira, na varanda de casa, se benze quando toca o sino da igreja matriz. Lá vem Seu Lourival com os livros contábeis debaixo do braço, vai para coletoria de Carlos Rizério, Luiz Ribeiro e Bernardo Coelho. Ida Benedictis molha as roseiras do jardim enquanto Dona Julieta não pára de elogiar o progresso de Boa Nova. No seu novo Karman-guia vermelho, passa Ernesto Benedicts em direção ao fórum. Boêmia Marinho e a professora Zirinha juntas, estão indo para a Escola Alexandre Porfírio e para a banca da Lapinha, respectivamente. Teresa Martins traz de Salvador as novidades da língua portuguesa.

O cine Santo Antônio se prepara para um novo filme. Vavá e Nicola Leto aproveitam o dia para a manutenção do cinema. Tena já preparou o cartaz. Pedro França e Zé Paladino marcam a continuação de um jogo de bilhar na Visgueira.

Na praça da Igrejinha, o serviço de alto-falantes anuncia mais uma página musical. Afonso Manta escreve o novo poema no Sombra da Tarde sob os olhares de Elmano Barros Moraes. Samuel Abreu com o novo açougue. Floriz Neto sentado à porta lendo o jornal. Desde a cinco da manhã, o Sargento Severino faz aula de educação física para o pessoal do Ginásio. Ariomar Rocha esperando para começar mais um baba na praça da feira (atual praça da Festa).

A rotina da praça é quebrada com a construção de mais um pavilhão, sinal de que a “furiosa” banda de tio Nadinho está prestes a tocar. Espera só um sinal de Seu Cidinho na hora em que o leilão para. Já se ouve o som das pancadas da batuta no trombone de Antonio Fagundes, que aperta o nó da fralda na curva baixa do instrumento para aparar a saliva. O povo começa a se aproximar. É a vez de João Leiloeiro descansar. Mais um litro de uísque é consumido na mesa de Badinho, Zelinho Fagundes, Nenzinho, Quito, Edvaldo Miranda, Omar, Liligo, Dr. Ruy Espinheira e o velho Miga, grandes amigos. Vitinho Borba, com a sua Yashica, registra mais um momento da festa. De paletó e gravata, Antônio Leto chega de Conquista. Cícero Gusmão ofertou mais um bezerro.

Ao lado, nas barracas do pessoal do ginásio, os reservados estão cheios. Quem está lá? José Manoel, Carlos Nei, Vicentão, Juvencinho Lago, Heraldão Curvelo, Leonel Messias, a figura inesquecível de Miguel Antônio Schettini (Satobão) e Armando Manta com pinta de galã americano. A palha de arroz é o chão da praça.

Olha lá Mituca, com a barraca de laçar as garrafas com aquelas varas de pescar e argola de metal na ponta. Jogando, com as varas, Jônatas Fagundes e Aziz Galdino Freire.

Já é hora de voltar pra nossa Poções, a da terra. Mas antes, vamos passar no Bar de Arnóbio Andrade, tomar a saideira e ainda comer um pão com manteiga na padaria de seu Arlindo Cambuí.

Estamos com saudades de tantos que vivem por lá. Todos estão bem vivos nas nossas mentes e nas nossas histórias. Aproveitam o eterno descanso enquanto a cidade ainda não é invadida pelos blocos de carnaval em plena Festa e pelos monstruosos carros de som.

É isso, nossa sorte é que existe uma outra possibilidade – o céu!
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Tonhe Gordo

Fiquei perplexo neste final de semana. Estava em Poções e a notícia se espalhou: - Roubaram o busto de Tonhe Gordo!!!. Não acreditei e fui confirmar o fato. Restaram os dois parafusos que prendiam o busto.

Tonhe Gordo e Poções não merecem tamanha falta de respeito. Um ato de vandalismo barato que mancha a dignidade do nosso povo, principalmente de um homem que trabalhou e se dedicou pela cidade, promovendo e colocando-a numa posição onde poucos conseguiram fazer.

O busto foi uma homenagem pública ao brilhantismo de um dos seus filhos ilustres.

Não defendo questões políticas ou preferências. Defendo um amigo. Fui buscar o texto abaixo, escrito e publicado em 2006, onde falo dele, da nossa consolidação de amizade, do companheiro de infância e adolescência, onde não se identifica a política como forma de aproximação entre nós.




Tonhe Gordo
“Muitos conheceram a sua brilhante trajetória política. Poucos se lembram ou viram o seu início como coroinha e sacristão da Igreja Matriz do Divino Espírito Santo. Eu acompanhei bem esse período e pude firmar uma amizade que se consolidou no Curso Ginasial, no Centro Educacional de Poções.

Tonhe era muito franzino. Estudávamos na casa de Fernandinho Schettini junto com Remo, Tonhe de Dôca, João Queiroz, Jota Fagundes, Miguel Mário Sola e Terezinha. Fernandinho foi quem colocou o apelido pra diferenciar de Tonhe de Doca. Tinha um outro apelido pronto, mas esse não pegou: Regaludo.

Naquela época, o sujeito ser sacristão era um cargo de extrema confiança do Padre Honorato. Com certeza não faltaram os avais de Dona Fetinha e Dona Janael, sua mãe. Mas acho que Tonhe foi promovido mesmo pela sua livre andança entre a cruzadinha e a sacristia.

Era um cargo de muita responsabilidade, pois deveria abrir a igreja antes da missa das sete, tocar o sino, preparar os paramentos do Monsenhor, acender as velas e as brasas do turíbulo, ligar os microfones, encher as galhetas de vinho e água, ajudar na celebração da missa e ainda passar a sacolinha do dinheiro. Quando tinha batizado, ainda fazia as anotações no caderno. Aos domingos, os coroinhas eram quatro e as tarefas ficavam mais fáceis.

Cada coroinha vestia uma capa com a cor indicada no anuário das missas. Mas sempre existia a distribuição dos postos dos coroinhas no altar pelo conhecimento de cada um. À direita do padre, ficava Tonhe Gordo, a esquerda era a minha posição e os dois restantes apenas seguravam uma tocha e observavam os movimentos como verdadeiros aprendizes.

Tivemos dois bons professores. Fomos formados por Guido e por Vicente, sacristãos anteriores.

Mas, nem tudo era trabalho. Aos domingos, a gente viajava para o interior do município. O padre Honorato havia comprado uma Vemaguete e Chinha era o motorista preferido dele. Andávamos por Duas Vendas, Rio das Mulheres, Morrinhos, Bom Jesus, Amianto, etc. Nesses lugares, a gente ainda lia a epístola.

Lembro bem das missas na mina do Amianto. Existiam uns franceses que faziam questão de oferecer um bom vinho. Aquilo, naturalmente, fazia com que o padre se estimulasse a voltar muito breve.

Bom mesmo era viajar para as cidades vizinhas nas épocas das festas dos padroeiros: Boa Nova, Ibicuí, Planalto, Iguaí, etc. Sentávamos à mesma mesa dos padres e o almoço era farto. Em Planalto, o almoço era na casa de Maria Padre. Em Boa Nova almoçávamos na casa do Padre Vicente e em Ibicuí, na casa do irmão do Padre Honorato.

Tonhe Gordo se afastou do trabalho de sacristão. Eu continuei um pouco mais e abandonei o posto bem na época em que a moda era usar camisa “cacharrel”. Já estava na idade de fazer farra e este posto não era condizente com minha nova atividade. Ganhei uma camisa “cacharrel” amarela e daí por diante o Padre quando me via dizia “camisa amarela, você abandonou a igreja”.

Fizemos os cursos de admissão e Ginásio juntos. Fomos bons alunos e sempre conversávamos longamente todas as vezes que nos encontrávamos, fosse na Festa ou na UPB, aqui em Salvador.

Quando completamos os 30 anos de Ginásio, na emoção do discurso, mencionei que aquela nossa turma estava dando um exemplo grandioso de união e que nela havia dado de tudo e, certamente, dali sairia um governador. Tonhe me confidenciou que o lugar dele era junto ao povo de Poções. Poucos meses depois, num ato de extrema infelicidade, ele se foi. O sucesso e o fracasso andam de mãos dadas.

Sendo apolítico e analisando apenas como amigo, sinto orgulho de poder ter convivido com uma pessoa com o brilhantismo de Tonhe, que se comparado, já demonstrava nos pequenos atos naquela convivência religiosa.

Mas somos apenas passageiros nesta vida. Não podemos apostar. Podemos viver e enquanto isto brilhar. Assim ele fez por Poções e não foi à toa que manteve o slogan de “Poções, o brilho do Sudoeste”.






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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Rua da Itália

Quando ainda escrevia no site Terradodivino, recebi o e-mail de uma leitora de Itabuna que se dizia impressionada pelo amor que nós, poçõenses, temos pela cidade. É verdade. O contexto e o tema sempre são os mesmos.

Numa cidade pequena, convive-se durante anos com o mesmo padre, prefeito e amigos. Freqüenta-se o mesmo bar e joga-se no mesmo campo de futebol. As raízes, naturalmente, fortificam-se e tornam-se sólidas a essa terra natal.

Evidente que todo interiorano tem a sua história. Poções teve histórias que diferenciaram tantas gerações. A paixão pela Festa do Divino vem da possibilidade e vontade de tantos se reencontrarem. Por isso, somos tão reticentes às mudanças e a evolução da mesma. Cada ano será um momento novo e vai se perpetuar nas mentes das novas gerações.

Mas, na minha cabeça, povoa a Rua da Itália, a rua onde nasci e fui criado em meio a tantas batalhas de badoques travadas pela geração anterior, a de Eduardo Sarno, como bem descreve no seu opúsculo lançado drante a Festa do Divino de 1988 e no blog http://www.familiasarno.blogspot.com/ . A minha geração já usava badoques para caçar passarinhos, calangos e derrubar frutas. Lógico que Antônio Celso Sarno levou mais tempo dando umas badocadas na gente. Mas, a rua fascinou por longo tempo e nossas histórias mostram esses aspectos em épocas diferentes.

Eu me lembro de uma Rua da Itália mais moderna, começando na esquina do Beco Apertado - a esquina da Farmácia de Dr. Ari Alves Dias.

Subindo a rua, sobre o passeio de ladrilhos furadinhos, ao lado da farmácia, existia a coletoria estadual onde passaram coletores como Rufino, Carlos Rizério Lima, Luiz Ribeiro, Badinho Marques e outros.





Fernandão Schettini, filho de Rafael, já tomava conta do armazém, que era um ponto de comércio de peles e mamona. A relíquia de cor verde ficava estacionada no interior – uma camionete americana da marca Fargo. Lembro do velho Rafael Schettini, com vistosos suspensórios, calça branca e gravata, sentado no escritório.

Ao lado do armazém, a casa de Dôca. Tinha uma oficina na garagem lateral e uma borracharia comum aos filhos – as forças dos pneus eram por ordem de chegada – cada filho tinha a sua vez e remuneração própria. Convivi com Tonhe, Paulin, Bada, Eraldo e Zé. Marcos, Marília, Adriana e Alex foram da geração mais nova. Eram constantes as presenças de Jeep´s, Rurais Willys e jipes Land-Rover de capota metálica, todos para consertos nas caixas de marchas e/ou descarbonização de motor. Acompanhava as desmontagens peça por peça. Vem daí o meu interesse e a iniciação na mecânica.

A casa deles era ligada à nossa. Ficávamos conversando horas dentro dos jipes e simulando as marchas. Vez ou outra, um jipe descia a ladeira e, sem freios, ia parar no posto de Miguel Labanca. Dôca balançava a cabeça, mandava empurrar pra pegar no “tombo” e novamente estacionar na frente da casa.

Já no primeiro ângulo da rua, começava o armazém de Fernando Schettini, filho de Miguel. Imensas pilhas de sacos de café e mamona para serem comercializados, mas antes o “caumonio aí” rolava solto. Os carregadores tinham trabalho intenso.

No mesmo prédio do armazém funcionava a oficina de rádios de Carlito Torres. Carlito, além da função técnica, tinha uma missão importante e interessante – era juiz de paz. Casais que brigavam eram apaziguados por ele.

A casa de Zóstenes Vaz era o ponto de apoio das nossas brincadeiras. Lá fazíamos circo, acampamento, fábrica de doces, balas e extrato de tomate. Zostinho, seu filho, era o estrategista e empreendedor da turma. Todo jogo de memória (resta 1, xadrez, etc.) era trazido por ele quando transitava em Salvador.

Minha segunda casa era a de Corinto Sarno, meu tio. Como os netos dele só apareciam uma vez por ano, eu dominava todos os espaços. Eles viajavam muito para Salvador e me davam a tarefa de “dar milho para as galinhas”, colher as goiabas, as imensas mangas e as uvas. Em troca, eu podia sentar na cadeira de balanço e ficar horas ouvindo a Rádio Globo até que se iniciasse a “Voz do Brasil”.

No beco ao lado, só havia o escritório da Coelba, que ficava logo atrás do cine Jóia, um imenso depósito de materiais de Fidélis do Arroz, onde hoje é um banco.

O calçamento chegava até a entrada do beco da usina de beneficiamento de arroz. O prédio da Prefeitura era uma obra imponente e abrigava o escritório do IBGE, que era chefiado por Vicente Ventura, um ferrenho vascaíno e também locutor do sistema de alto-falantes.

No sentido contrário, do outro lado da rua, a Igreja Batista. A casa de seu Alcides Fernandes era bem ao lado da Igreja.

Defronte a Prefeitura, a casa de Luiz Sarno. Ali era uma central de distribuição do leite que vinha da Fazenda Caititu na camionete Ford amarela. Sem dúvida, o melhor quintal de Poções - tinha todo tipo de frutas. Uma construção chamava a atenção – a cobertura da garagem era um belvedere com a vista maravilhosa para a Lapinha e a baixada das gramas.

Descendo no sentido da praça, a casa de Carlito e Uchinha. Ela foi a responsável pela idéia de vender pastéis em tabuleiros de madeira, iniciando um novo sistema de vendas em Poções. Jorge (Diucha) era da outra geração, mas gostava de andar com a gente.

O fórum era uma das atrações da rua. Da janela, sobre paralelepípedos amontoados, assistíamos aos grandes júris com a participação de Ernesto Benedictis, Ruy Espinheira, Carlos Nápoli e tantos outros que ali passaram. Eram brilhantes com aquelas togas. Também ali se guardavam e se apuravam os votos das urnas eleitorais.

Depois da ladeira que dava nas gramas, tinha a casa de Américo Libonati. Uma moderna construção com amplas salas e quartos. Brincávamos muito com Zé Américo nas suas férias. Sérgio e Paulinho ainda eram crianças.

A casa de Vicente Palladino tinha uma particularidade. Ele e Dona Teresa só tiveram filhas e todas usavam cabelos longos.

A casa de Fernando Schettini e Stella também era uma construção em estilo moderno. O movimento maior era no varandão, quando os netos Benício e Rafael Frazão, Rita e Rafaelzinho apareciam nas férias. A casa ficava sempre aberta e a varanda cheia com as presenças de Deolino Frazão, Dona Teresa, Elier Barreto e Dona Adelina. Marco Antônio e Rafael eram pequenos. Essa casa era o nosso quartel nas brincadeiras de bandido e policia.

Devido ao desnível da rua da Itália, estas três casas possuem áreas de serviços e porão.

A casa que pertenceu a Valentim Sarno fora vendida a Ed Porto Alves e cessaram as possibilidades de exploração do quintal.

Emilio Sarno era o próximo vizinho. Também pouco freqüentei a exceção dos aniversários ou nas visitas aos tios.

O casarão dos Schettini ainda permanece com as mesmas características. O portão, com as iniciais de José Schettini, impressiona pela beleza da arte. Quando eu abria a porta de casa, avistava a figura do Seu José, no degrau, com a capa colonial. Soube que a capa está com Remo e quando for a Poções ele prometeu que vai vestir para refazer a cena histórica.

Outro local onde circulava livremente era a casa de Fernando e Aracy Schettini. Sempre os acompanhava nos jogos do Atlético no campo da Rua de Morrinhos e no cine Santo Antônio, onde as cadeiras da terceira fila, ao lado da parede, eram reservadas para nós. Zé Marinho era o grande amigo contemporâneo, mas eu era colega de Fernandinho. Pepetinha foi minha professora de Português na banca e no ginásio.

Não posso esquecer de Dona Fetinha Marinho, a mãe de Aracy. Ela foi a responsável pela introdução religiosa de muita gente boa, com a condução impecável da Cruzada Eucarística. A pequena ala direita do altar mor da Igreja Matriz sempre foi o local da “cruzadinha”, como ela mesma chamava.

Dezinho trazia o leite da fazenda deles em Morrinhos para ser comercializado em Poções. Sobre um jegue, era pouco provável ir a Morrinhos e não encontra-lo na estrada.

Finalmente, no último prédio do outro lado da Rua da Itália, a Tipografia de Alcides “Batatinha”. Ali eu matava o meu tempo livre. Admirava todas as funções. Todo mundo fazia tudo. Zé Armando era o tipista principal e eu ficava admirando os clichês prontos com as letras montadas ao contrário. Joel de Jacó operava a máquina de impressão, Jessé dava o acabamento final na guilhotina e João Batatinha, além de excelente jogador de futebol, supervisionava a tudo e a todos. O barulho da máquina de estampar e o mecanismo de renovação da tinta me fascinavam. Dali saiam os panfletos dos políticos, os talões de notas e um periódico com notícias de Poções redigidas pelo Seu Alcides.

O sobe e desce da Rua da Itália ainda é muito interessante. Grande parte da vida da cidade sempre circulou por ali. Circularam gerações, circulou a história de Poções e circulará o futuro.

Assim, a gente entende por que o amor que temos por essa cidade é fraterno e eterno, como numa grande família. Mas ainda sinto saudades das fogueiras de São João, da tradição dos envelopes com dinheiro na passagem de ano, da exibição de presentes no dia seguinte à noite do Natal e dos vatapás e carurus que ainda recebemos dos nossos vizinhos na Semana Santa.

Um dos poucos símbolos da presença italiana continuará aí, resistindo. O comércio avança sobre ela. Os filhos da Rua da Itália estão pelo mundo afora. Mudaram a placa para Rua Itália. Não mudaremos a história. As minhas lembranças serão eternas.

Serão eternas, também, as lembranças dos meus amigos de infância, alguns deles referenciados acima.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Félix Magalhães - 80 anos

Através de Eduardo Sarno, fui informado dos 80 anos de Félix Magalhães, ocorrido em Poções no último sábado, 16.
Registro o fato com imensa satisfação e parabenizo essa figura ímpar, o maior historiador da cidade, descendente dos primeiros que ali chegaram e fundaram a nossa Poções.
Aguardamos que se digne nos presentear com um livro sobre a nossa história. Um presente que os órgãos públicos de cultura precisam incentivar.

Parabéns Félix!!!
(Foto: Eduardo Sarno)


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"Só mesmo em Poções" - Parte 1

Viajar pela Real Bahia e Penha
A Real Bahia era uma empresa de ônibus que fazia a linha para Salvador. Foi comprada pela Empresa de Ônibus Nossa Senhora da Penha, que operava a linha para o Rio de Janeiro – na época, a propaganda da Penha era “Vá e venha pela Penha”, e diziam que os ônibus eram os “tapetes mágicos” devido à introdução da suspensão a ar. Durante a viagem, ficava lendo o bilhete: Lia as regras das condições do seguro. Me chamava a atenção o nome da rua da garagem: Rua Carmosina, S/N (a rua fica na Cidade Nova, entrada pela Avenida Barros Reis e ainda existe a garagem de uma outra empresa).

Jogar três marias
Todo mundo tinha esse vício. Nem sempre brincadeira de mulher. Era jogado com cinco pequenas pedras comuns, muitas vezes substituídas por sementes de mucumãs. Sempre rolava uma aposta – cada partida valia alguma coisa;

Jogar triângulo
Interessante, o triângulo era apenas a figura geométrica riscada no chão. Prendíamos um prego sem cabeça ou um arame grosso em um pedaço de madeira e estava feito um triângulo. Cada um tinha a sua vez de jogar e a intenção era dar uma “garganta” no adversário (a garganta era apertar a passagem por onde o adversário sairia);

Dá o nó
Quando a gente jogava bola, trocava a roupa no meio da rua mesmo e fazia um montinho. Passava um esperto e pegava a perna da calça e dava um nó cego. Pra sacanear, muitas vezes mijavam sobre o nó.

Caçar borboletas
Ali na baixa das gramas, havia muita borboleta e um caminho pelo fundo da casa de Luiz Sarno, saindo lá na Lapinha, no fundo da Escola Alexandre Porfírio. Fazia “banca” com a professora Lia Paradela e ela colecionava borboletas. Sempre carregava um vidro e colocava os insetos caçados para presenteá-la. Era puro puxa-saquismo mesmo.

Rádio Mundial
Existiam dois programas de gêneros totalmente diferentes, mas de grande audiência. O primeiro deles era o religioso, de Alziro Zarur. Os mais crentes colocavam um copo de água sobre o rádio e o mesmo tremia quando Zarur falava. Depois, ao final do programa, eles bebiam a água e se sentiam aliviados dos seus sofrimentos.
Outro programa era do dj Big Boy. Uma sensação que acontecia todos os dias às 18 horas. Uma verdadeira iniciação ao rock. Ficava sentado na varanda de casa e através do meu pequeno rádio portátil Semp, quatro faixas, ouvia o programa. À noite, os fãs de Big Boy comentavam sobre as músicas tocadas.

Comer o pão de Arlindo
Sentar no banco do jardim e ficar conversando durante horas era a nossa diversão. Quatro da tarde, esperávamos pelo pão de Seu Arlindo. Era a hora que saia a primeira fornada e a temperatura cuidava de derreter a manteiga. Na época, a Padaria Bom Jesus acabara de ser transferida para a praça.

Jogar bilhar no Bar de Duca
O jogo de sinuca era bastante conhecido nos bares de Mera, Arnóbio Andrade, Duca, Tonhe Luz e outros da cidade. Jogar bilhar era um charme diferente e, quem aprendia, melhorava a qualidade no sinuca. Eram três bolas, uma vermelha e duas brancas (uma delas tinha uma marca preta). Pra quem não conheceu, a pessoa tinha que escolher uma bola e bilhar nas outras duas. Exímios jogadores, dava gosto: Pedro França (pai de Sandoval), Fernando Schettini (Bigode), Pedro de Anália, Cidinho músico, or irmaos Palladino e outros tantos.


O poeta Bocage
Bocage, o poeta português, teve o seu nome trocado em Poções. Passaram a chamá-lo de Bocais. Portanto, todas as histórias e piadas sobre sexo tinham como personagem o velho Bocais. E haja história!

Quem souber mais, me conte.


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